
Era uma noite em Recife. Eu
estava na casa de amigos no bairro de Boa Vista. Estava ali hospedado, em
férias, e acontecia uma festa. Em determinado momento, alguns amigos foram para
o quarto. Hoje eu sei, mas àquela época não, que este sutil movimento dos
cantos, o êxodo silencioso para os quartos, a súbita discrição, esse
reconhecimento ancestral de pessoas que mal se conhecem, um entendimento tácito
dos olhares, todos esses índices conduzem a um único ponto. Desatento que era e
sou, fui também ao quarto. Lá estavam os amigos desembrulhando um pedaço de
jornal com a maconha. Fiquei por ali olhando entre curioso e cansado. Não tenho
nenhuma curiosidade por drogas, assim como não gosto de álcool, que me dá
sensações desagradáveis. Não gosto desse tipo de embriaguez. É apenas não
gostar, como quem escolhe andar pela esquerda e não pela direita... ou, talvez,
um fastio, uma birra, como a que me fez recusar a chupeta quando criança. Minha
mãe conta que a minha rasgou, não acharam outra igual. Veio uma maior, outra
menor, sempre diferentes. Recusei todas. Talvez isso, talvez nada disso. O
desejo de explicar tudo é a primeira prepotência humana.
Eu estava lá, olhando a
intrincada operação de fazer um cigarro de maconha. Devia ser algo muito
difícil, pois todas as tentativas resultavam em desastres. Os cigarros eram
tortos, uma hora cheios demais, em outras, desfaziam-se. Foi então que eu disse: eu sei fazer
cigarros.
Eles não acreditaram. Eu, que
nem bebia, ia fazer os cigarros?
O fato é que eu sabia. E muito
bem.
Nunca gostei de fumar cigarros,
apesar de todos na minha família fumarem. Decididamente, neste aspecto não sou
fruto do meio. Algumas vezes, quando minha mãe me pedia para ir buscar a
carteira de cigarros, eu acendia e já trazia acesso. Recebia uma bronca leve,
sem muita convicção e pronto. Tentei umas vezes, mas não gostei. Gostar ou não de alguma coisa talvez dependa
dessas pequenas experiências na infância. Lembro que levei minha adolescência
inteira sem gostar de creme de leite. Tinha ânsias de vômito só de pensar. Até
que um dia, sabendo que ele compunha a receita de um doce, passei a vê-lo com
melhores olhos, ou paladar. Os enjoos
passaram. Nada mais natural, já que os doces são as minhas drogas com seus
males e prazeres e contra os quais luto diariamente.
Quanto aos cigarros, aprendi a
fazer na adolescência. Tinha um avô que fumava cigarro de palha, com fumo de
rolo, daqueles comprados na feira. Ele não podia fazer sozinho. Já estava
velhinho. Aliás, desde que me lembro, ele era assim. Ele não tinha movimento de
um dos braços, por causa de um tiro que sofreu numa emboscada de um ex-capataz,
uma história a ser contada em outra oportunidade. Eram os tempos mais selvagens
do sul da Bahia. Ele também já estava completamente surdo, um mal mais
prosaico, causado pelo destino dos genes. Bem, desde muito pequeno, eu tinha de
sentar a seu lado. Ele, naquelas cadeiras de lona de diretor de cinema
americano, tão comuns no interior, eu, num banquinho. Tinha de tirar pedaços de fumo do rolo, fatias
finas, depois colocava uma quantidade na mão e esfarelava, ou desfiava, como se
desfia frango cozido. Fazia isso na
palma da mão, que guardava aquele cheiro por dias. Pegava o papel de fumo e colocava uma porção
exata. O segredo era essa quantidade, que dava um cigarro na medida certa. Com
a prática, eu fazia todos os cigarros iguaizinhos. Depois, era preciso enrolar
o papel. Primeiro, o papel ainda apenas dobrado, fazia a quantidade de fumo
ganhar a forma certa. Só então enrolava o papel, usando o canivete para prender
a ponta interna dentro do rolo, da espiral que seria feita. Com saliva fazia-o
colar. Ainda com o canivete, empurrava a pontinha dos canudos de fumo para
dentro, fechado o cigarro nas duas pontas.
Com as variações necessárias,
fiz lá os cigarros de maconha. Ficaram bons na medida do possível que o papel
não era o adequado. Havia muito improviso naquela noite. Logo eles acenderam o
cigarro, que passou de mão em mão. A fumaça subindo espessa fazendo círculos
que se transformavam em espirais, mas que se embolavam no caminho e se espalhavam como um
borrão branco. Aos poucos a conversa seguiu o mesmo caminho, os assuntos
circulavam em torno da roda, enrodilhavam-se na tentativa da espiral ascendente
e logo se desfaziam numa massa informe de risadas. Novamente, uma tragada, nova
baforada de ideias, formava-se a primeira curva da espiral, a segunda; mas, de
novo, o borrão. Outra tentativa, outra e outra e agora nem mesmo a primeira
curva se formava. Tudo era apenas borrão. Desinteressei-me, saí do quarto. Eles
ficaram lá dentro esfumaçados e vagos em suas dissipações.
2 comentários:
Nossa! Divertiu horrores meu fim de madrugada ao ler isso, muito bom! Fiquei imaginando o senhor, como meu mestre e professor, bolando um cigarrinho desses. Mas, ri mesmo ao imaginar a sua expressão facial que é melhor! Foi realmente cômico! Adorei o blog! Aguardo mais postagens. Acompanharei diariamente!
Um grande abraço!
Texto excepcional, tinha que ser escrito por ti Marcus. Forte abraço!!! Parabéns!
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