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domingo, 22 de fevereiro de 2015
quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015
A TARDE DE UM FAUNO
No futuro, todos falariam do menino que se jogou do edifício. O que teria
acontecido com ele? Esse seria o mistério. Uma moradora do sétimo andar diria:
— Eu vi quando ele caiu, tão pequenino, pelo poço da escada, lá do último
andar. Dezesseis andares. Tão alto, não podia ter sobrevivido.
Mas o corpo, o corpo ninguém acharia. Davi estaria longe. Ia voar para
muito longe, uma distância que ninguém imagina e que pra medir é preciso dizer de
um longe aonde nunca se chega, um longe de onde não se pode voltar. Ele voaria.
E pra voar bastava ter pensamentos felizes, como nas histórias de fadas. Seu
corpo ficaria leve, sem mais nenhum peso da dor que levava. Era só flutuar. Um
vento o sopraria para longe, onde o destino o aguardava outro, feliz e para
sempre. Para sempre, como nos contos de fadas, a alegria que não acaba. Era só
atravessar o buraco na parede, abrir sua capa azul de super-herói e lançar-se
do décimo sexto andar. Ele calculou tudo. Os olhos estavam voltados para o alto
porque era esse o seu objetivo: o alto, o céu quase vermelho daquele fim de
tarde, as nuvens cinza da cidade seriam vencidas e, lá em cima, por cima de
tudo que havia, nuvens cor-de-rosa. Ia subir acompanhando a tarde, a medida de
seu vôo. E, então, mesmo a tarde sumiria no horizonte. Restariam as estrelas da
noite. Ele procuraria aquela mais brilhante que fica à direita de que vai, e
depois outra, tão intensa quanto a primeira. Nesta, viraria à direita e voaria
muito tempo até reencontrar novamente o sol e seu calor. Não mais a tarde que
morre no horizonte da cidade, com suas cores fortes demais por causa da poluição,
como aprendeu na escola. Um sol de amanhecer, com um amarelo novo e brilhante.
E toda sua vida seria assim como o calor que surge para aquecer as gotas de
orvalho da noite, todas as coisas brilhando como só é possível quando se
amanhece pela primeira vez. Bastaria ter pensamentos felizes, quando seu pé
esquerdo acompanhasse o direito, que já estava em pleno ar. Os dois pisariam o
nada. Um único passo. O salto. Voar. Bastava ter pensamentos felizes.
Mas ele não tinha. Nada que pudesse lembrar era um pensamento feliz. Tentou
imaginar um futuro alegre, algo bom. Nada. Tentou imaginar o Fauno levantando-o
do chão como daquela vez em que tropeçou na entrada do prédio. Ele o agarrou
pela cintura e o pôs de pé.
— Machucou?
Quis correr de vergonha, mas seu corpo inteiro estava paralisado. Uma
descarga elétrica paralisava seus nervos. Ia morrer ali. Era uma presa vencida.
O corpo reagia involuntário, convulsionando entre as pernas. Com muito custo
correu para a escada, seu refúgio. Ninguém usava as escadas. Queria ir para
casa se esconder. Chegou mesmo até a porta do apartamento no quarto andar, mas
desistiu. Sabia que estava vermelho. Sua mãe notaria. Resolveu subir para o último
lanço da escada lá em cima, onde o décimo sexto andar se liga ao terraço do
prédio, lugar abandonado e que há muito tempo era seu esconderijo. De lá podia
ver as janelas do quarto e da sala do apartamento do Fauno, e mesmo uma parte
do banheiro ele avistava por uma pequena janela. Os apartamentos de fundo tinham
janelas para o poço central. E ali do alto da escada, pela parede vazada, ele
podia avistar tudo de vários apartamentos. Era assim que ele gastava suas tardes
fora de casa. Logo que estava liberado de almoço e deveres, fugia. Batia atrás
de si a porta do apartamento e esquecia de tudo. O pai e a mãe desapareciam de
sua vida. Ele ficava só no mundo e podia ser o que quisesse, um aventureiro, um
mágico ou um cientista. O alto da escada era seu castelo e seu observatório. Lá
estava o Fauno em casa, tirando a roupa. A camisa e as calças, a cueca. Estava
inteiramente nu. Davi podia vê-lo inteiro caminhando pela sala. Era um corpo
forte e branco. Peludo. Os pêlos negros do peito desciam pela barriga num
caminho estreito e se espalhavam entre as pernas. Coxas, bunda, tudo era
coberto por uma pelagem negra de fios longos, em contrate com a brancura da
pele. Também nas costas, apenas no alto, uma penugem preta começava e se
estendia até os ombros e escorria pelos braços até os nós dos dedos. Todo o
corpo era um feixe de músculos, como uma estátua grega, como uma gravura, como
a gravura no livro de mitologia. O menino logo reconheceu naquele homem o fauno
de seu livro. Era o mesmo corpo musculoso e peludo. O rosto era também marcado
como o da gravura: forte, sobrancelhas grossas e negras, como duas asas de
corvo. Mas, de tudo, Davi ficou impressionado com as pernas fortes. Ele parecia
ser menos humano da cintura para baixo, como um animal. E mesmo os pés, se não
era cascos de bode como os de um fauno verdadeiro, eram tão marcadamente embrutecidos...
A primeira vez que Davi o viu, ele estava deitado na cama e alisava o próprio corpo. O menino,
em sua pouca vida, não podia entender o que se passava. Até mesmo aquele corpo
tão extraordinário era novo para ele. Em nada se comparava ao do pai, tão
absolutamente neutro. Se lhe perguntassem por que ficou tão fascinado por
aquela visão, não saberia dizer. Já tinha visto outros vizinhos nus nas suas
expedições. Eram sempre muito engraçados de ver. Já tinha visto colegas da
mesma idade, curiosos que estavam de comparar-se. Mas ali, vendo o vizinho nu
tocando o próprio corpo, sentia algo diferente. Era como se ele tocasse de
longe o corpo do menino. Se passava a mão no peito cabeludo, era como se
alisasse o peito liso do menino; se descia sua mão para as pernas fortes,
tocava na distância a perna fina do menino. E quando manipulou o próprio sexo
parecia agarrar o menino e tentar fazê-lo crescer, esticar e produzir o gozo
remoto. Gozo? Para ele era apenas um estranhamento, uma sensação boa e
aflitiva, como um bombom de açúcar que deixava um buraco no sabor. E mesmo o
sabor era algo sem descrição, sem modos de contar para os outros. Naquela tarde,
a primeira, o pequeno Davi soube que tinha encontrado alguma coisa. Soube sem
saber. Ele aprendeu um cheiro novo no corpo e fugiu assustado. Desceu as
escadas correndo e voltou pra casa. Nem teve medo do que pudesse encontrar. Ele
sabia o que encontraria e a certeza espantava o medo. Ele precisava de algo
conhecido e familiar, precisava de um refúgio para o próprio corpo que teimava
em ser outro. Precipitou a noite e abriu a porta. Nem eram três horas da tarde.
No dia seguinte, à hora da libertação, estava no hall de seu andar. Ao
contrário dos outros dias, não sentia o alívio de deixar o apartamento. Estava
tenso. Queria subir as escadas e olhar. Tinha pressa e tinha medo. Foi subindo
devagar sem prestar atenção às janelas dos apartamentos que surgiam pelo vazado
da parede. Não viu o morador que escondia garrafas vazias embaixo da cama, ou
que a velha do nono dormia no sofá com um seio à mostra com uma ferida antiga que ela cobria com um
lencinho puído. Outra moradora, Dona Heloísa, procurava sua gata perdida. Morena.
Ela sempre deixava o bicho escapar e depois ficava procurando de apartamento em
apartamento. Davi gostava de esconder a gata e se divertir fingindo ajudar a
velha. Ele achava e ganhava doces como recompensa. Tantas janelas abertas. Parou
apenas no décimo quarto andar para ver o apartamento do ator. Era assim que sua
mãe e os outros moradores o chamavam. E quando diziam ator, o olhar tinha um
jeito diferente. Era como se dissessem o contrário. O porteiro ria dele pelas
costas e a mãe lhe disse um dia para não falar com ele. Não era ator de
televisão, isso ele sabia. Todas as tardes era possível vê-lo em casa mexendo
em vestidos coloridos, costurando alguns. Ele sempre costurava. Um dia, quando
pulava da escada no andar dele, foi surpreendido.
— Ei! Vai voar — disse o ator, quando viu o menino com um pano amarrado
no pescoço. — o que você está fazendo cá em cima?
Davi disse que estava brincando.
— Mas com essa capa? Não tinha nada mais bonito? Olha, vem comigo. Eu vou
lhe dar uma coisa.
Davi o acompanhou até seu apartamento. Era um quarto e sala. Todos os
apartamentos dos fundos eram assim. A sala estava abarrotada de vestidos em
cabides, em cima do sofá, numa máquina de costura posta no canto, em todo lugar.
Na mesa, junto com pratos e xícaras usados, estavam tesouras, linhas, fitas,
retalhos de tecido e um pote de botões coloridos. Davi entrou desconfiado.
— Não tenha medo. Sente aqui.
Ele tirou alguns vestidos do sofá para abrir espaço. Davi lhe perguntou
se ele era ator como diziam no prédio. O rapaz olhou para menino. Parecia ser jovem ainda, mas não era.
Em torno dos olhos já começava a se instalar um leve cansaço.
— Foi isso que lhe disseram? É! Talvez eu seja um ator, mas de um
personagem só. Esse aqui.
Ele pegou um vestido no cabide e pôs junto ao corpo. Depois apanhou uma
peruca de mulher, cabelos pretos longos, e colocou na cabeça. Davi se assustou.
Não tinha visto a peruca ainda.
— Absoluta Taylor! Este é meu personagem.
Fez uma careta engraçada enquanto balançava a peruca sobre a cabeça e
fazia o vestido dançar em frente a corpo. Davi riu da brincadeira. Ele lhe
contou o que fazia. Fingia ser uma cantora, se vestia de mulher e se
apresentava todas as noites numa boate. O nome da cantora era Absoluta Taylor,
um nome engraçado, achou Davi.
— É! Vendo pelo seu lado, é engraçado. Não era pra ser, mas é.
Também fazia vestidos. Fazia para usar e para outros atores. Ganhava
dinheiro assim.
— Você quer que eu lhe faça uma capa?
Davi nem acreditou naquilo. Queria.
— Como?
Davi queria uma capa azul. Podia ter estrelas?
— Eu tenho esse tecido aqui, veja.
Era um tecido de cetim azul. Um azul escuro.
— Posso por umas estrelas também.
Davi agradeceu. A capa ficaria pronta em poucos dias. Durante esse tempo,
ele passou a ir à casa do rapaz todas as tardes. Ficava olhando ele trabalhar e
ouvindo histórias e brincadeiras. Ele cantava em uma boate, já sabia, mas sabia
também fazer festas infantis vestido de palhaço. Nunca mais fez, mas ainda
tinha a roupa. Era um palhaço vermelho e amarelo, a gola de babado enorme.
Tinha um chapéu cheio de luzes que acendiam. O rapaz vestiu a roupa e pintou o
rosto. Davi passou a tarde mais feliz de sua vida rindo das brincadeiras do
vizinho. Uma outra ocasião, ele vestiu a roupa de Absoluta Taylor e cantou uma
música em inglês. Era uma música triste, mas muito bonita. Assim eram aquelas
tardes.
A capa ficou pronta. Uma capa azul cheia de estrelas. Era uma capa de
super-herói, mas podia ser também uma capa de mágico, só faltava a cartola e o
coelho.
— Olha, vou arrumar um material pra fazer uma cartola pra você. Preciso
de papelão, de um tecido preto. Quando eu achar, eu te chamo. Experimenta aqui.
Ele colocou a capa no menino. Era larga e tinha estrelas bordadas, feitas
de um tecido prateado. Amarrava no pescoço como um colarinho de camisa, bastava
abotoar. Mas tinha um problema, arrastava no chão.
— Eu fiz grande porque você está crescendo. Se fizesse do seu tamanho não
ia ficar voando. Quando você correr ou saltar da escada, vai ficar legal.
O menino vestiu e saiu pelo corredor. A capa voava. Nessa época, ele
ainda não tinha surpreendido o Fauno. Nem mesmo usava o último vão da escada
como esconderijo. Foi justamente a capa que o fez achar o lugar. Quando ela
ficou pronta, ele viu que não podia levar pra casa. A mãe não ia gostar que ele
tivesse conversado com o tal ator do décimo quarto. O pai, então! Foi aí que
ele descobriu o esconderijo. Era um lugar deserto. No alto da escada, onde
havia o alçapão para o teto do prédio, tinha um patamar. Estava sujo e era
perigoso. Para subir até lá ele passava por um lanço de escada que tinha um
buraco na parede. Dava medo, mas também era fascinante olhar para baixo daquela
altura.
Foi aí que ele viu o Fauno deitado em sua cama. Era uma visão
inexplicável, como se um deus dormisse entre os humanos. Lembrar do fauno do
livro foi imediato. Ele já tinha uma sensação de perplexidade ao olhar o
desenho, uma hesitação em passar as páginas. O fauno de papel estava deitado
sob a sombra de uma árvore e segurava uma flauta próxima à boca. Estava no
gesto de iniciar uma música e sorria um sorriso entre sedutor e maléfico, como
quem convida e já anuncia: é uma armadilha, você vai se perder. Davi se perdia.
Ficava horas olhando a gravura. Levava ela consigo para o colégio, para os
sonhos, imaginava o fauno caminhando pelo bosque espantando os animais, correndo
atrás das ninfas da outra gravura, participando de batalhas e escapando de
perigos. Era sua fantasia preferida. Agora, ali em sua frente, o próprio
personagem lhe aparecia, desta vez sem as tintas do livro. Era a carne viva. Ele
se mexeu na cama e escapou do campo de visão de Davi. Ele teve de descer três
degraus para recuperar a visão. Via entre os furos da parede e, ao mesmo tempo,
não era visto. O Fauno começou a se acariciar e o toque no próprio corpo
atingia o pequeno Davi em seu esconderijo.
Da escada do décimo quinto andar Davi podia ver Absoluta Taylor em seu
apartamento. O vizinho vestia sua roupa de mulher. Experimentava as formas,
colocava enchimentos no peito, escolhia uma peruca. Estava entretido com os
preparativos para a noite. Davi não lembrou da cartola. No dia anterior, antes
de subir até o alto da escada pela primeira vez, ele só tinha cabeça para a
cartola que ia ganhar para fazer de sua capa de super-herói uma capa de mágico.
Naquele momento ele só pensava no que encontraria lá em cima. Deixou o novo
amigo com suas roupas e subiu. Não havia ninguém. As janelas estavam abertas,
mas ele não estava lá. Davi ficou decepcionado. Foi procurar sua capa nova e
vestiu. Não quis brincar com ela, ficou sentado num degrau no alto da escada
olhando pelo buraco. Ficou quase a tarde toda naquela posição, esperando. Podia
ver toda a altura do prédio e as várias janelas abertas dos vizinhos. Lá
embaixo, Morena passeava pelo playground. Logo Dona Heloísa ia sair para
procurar a gata. Ele pensou em descer e salvar a gata com sua capa de herói e
já ia descendo as escadas, quando avistou
o Fauno. Ele apareceu na sala. Devia ter chegado da rua e o menino não o
viu. Estava só de cueca. Parou no centro da sala e começou a fazer exercícios
primeiro em pé, depois no chão. Usava pesos. De vez em quando ele ia até o
quarto e se olhava no espelho admirando o resultado. O corpo inteiro suava.
Quase uma hora depois, parou. Tirou a cueca e, nu, começou a arrumar uma roupa
na cama. Depois de tomar banho, vestiu-se e saiu. A tarde acabava. Davi tinha
de voltar ao apartamento. Voltar para casa era sempre doloroso, era como voltar
ao buraco de onde já se conseguira escapar. Ele sabia o peso da terra e de como
sufocava alguém que fosse enterrado vivo. Aquele dia, porém, o seu sofrimento
era diferente. Ele tinha de deixar o Fauno. Não podia segui-lo aonde quer que
fosse. Guardou sua capa num saco e desceu. Podia apenas esperar a próxima
tarde.
E ela veio. Vieram muitas tardes como aquela. Ele observava secretamente
o Fauno. Ele fazia exercícios todos os dias, quase sempre estava nu ou de
cueca. Davi começou a ficar atento a tudo sobre ele. Logo soube que ele dormia
até o meio-dia, enquanto ele estava na escola. Passava as tardes em casa e saía
logo que anoitecia. Voltava tarde, muito tarde. De seu quarto, Davi ficava
observando a entrada do prédio, à espera dele. Nunca pode vê-lo chegar. Dormia
antes. Havia dias em que ele colocava uma música e dançava. Começava vestido.
Depois ia tirando peça por peça, conforme a música avançava. Ele se contorcia e
passava a mão pelo corpo. Eram umas roupas esquisitas, fantasias de cowboy,
soldado, marinheiro. Um dia ele vestiu uma roupa de mágico, com cartola e tudo.
Davi reconheceu a capa igual a sua, ou quase. Era preta, tinha um forro
vermelho, mas tinha as mesmas estrelas prateadas, o mesmo colarinho de camisa. E
aquela cartola? Teria sido Absoluta Taylor quem tinha feito? Eles se conheciam?
Davi logo teve a resposta. O Fauno na casa de Absoluta Taylor. Experimentava
uma roupa vermelha. Davi não sabia explicar o que se passava, eles foram para o
quaro e fecharam a janela. Ficaram lá um bom tempo, até que anoiteceu. Quando
Davi foi pra casa, eles ainda não tinham reaparecido. Todas as luzes do prédio
se acenderam, menos lá. Tudo estava apagado e secreto no apartamento do ator.
Ele não queria ir mais à casa do ator.
— Você não foi mais lá em casa. Quando vamos fazer aquela cartola?
Davi hesitou. Tinha raiva do rapaz. Não sabia por que, mas tinha. Por
outro lado, queria saber mais sobre as janelas fechadas. Ele não sabia? Sabia.
Seu corpo já lhe ensinava. Um alarme obscurecido tinha sido disparado, mas era
com se falasse uma outra língua. Era preciso traduzir para entender tudo. E as
janelas fechadas faziam ele imaginar com clareza tudo o que se passava lá
dentro. Ele não estava lá, mas aquele quarto fechado se escondia dentro dele e
queimava. Era uma bomba latejando sua contagem regressiva. Quando iria
explodir?
Davi acabou indo à casa do rapaz. Queria tocar aquela roupa vermelha.
— Vou fazer um pouquinho maior pra durar mais tempo.
O rapaz media sua cabeça com uma fita métrica. Davi estava crescendo, ele
já sabia. A capa era mais comprida, suas roupas eram maiores, a cartola era maior.
Todos lhe davam algo maior que ele. Era preciso crescer para conquistar as
coisas, caber dentro delas. Nada no mundo tinha seu tamanho. Aquelas sensações
todas que rodeavam sua cabeça e seu corpo também eram assim, maiores, folgadas,
distantes. Ele precisava crescer para caber nelas, para entendê-las. O relógio
fazia tic-tac e não avançava. Parecia uma eternidade.
— Onde você achou isso?
Uma calça vermelha. Davi tinha achado. Teve de procurar entre o amontoado
de roupas, que vasculhou com um ar displicente. As laterais da roupa tinham uma
costura feita com velcro, fácil de descolar.
— É uma calça de teatro. É feita pra se tirar rápido. Não, não significa
nada. É só uma calça vermelha. Me dê aqui.
Ele tomou a peça de Davi e guardou. Voltou a cuidar da cartola.
— Veja, eu tenho o tecido certo. Acho que amanhã está pronto.
Davi deixou o apartamento sem muita expectativa. Já não ligava mais para
o presente. Pensava apenas no toque daquela roupa na sua mão. Um toque que logo
se juntaria a outro. Na entrada do prédio, aquela queda. Duas mãos grandes e
quentes seguraram a sua cintura e o
levantaram. O Fauno. Ele o ergueu até a altura dos olhos antes de colocá-lo no
chão. Nunca esteve tão perto. Olho com olho, boca com boca.
— Machucou?
Ele falou com um sorriso discreto nos lábios. Era a gravura do livro que
se materializava na frente do menino. O mesmo sorriso que convida e avisa: é
uma armadilha, como um tigre no último instante antes do salto. Botou o menino
no chão e passou a mão em seus cabelos, bagunçando tudo que já estava
bagunçado. Ele correu para a escada e subiu, subiu toda aquela altura de uma
vez. Quis ir pra casa, mas desistiu. Quando chegou lá no alto, estava quase sem
ar. Seu corpo pegava fogo. Logo, o Fauno chegou ao apartamento e começou a tirar
a roupa. Ia tomar banho. Davi podia sentir aquelas mãos ainda quentes no seu
corpo. Tocou os cabelos que elas tocaram, tocou a cintura e continuou se
tocando, enquanto relembrava cada sensação, os olhos fixos no homem nu ali à
sua frente. A bomba relógio do seu corpo latejava cada vez mais rápido, cada
vez mais rápido, até que explodiu em gozo. O primeiro. O corpo todo se retesou,
bombardeado por correntes elétricas. Era quase uma convulsão. Davi ficou
surpreso com aquela novidade de alegria. Um prazer que nunca tinha sentido
antes. Ele se sentiu como se tivesse crescido, como se já coubesse nas roupas
largas. Seu corpo, agora, se revelava maior do que era. Ele estava maior. Ficou olhando o Fauno tomar banho. Estava no
buraco do alto da escada. Nesta hora, ele foi descoberto. Da janelinha do
banheiro o Fauno o viu. Novamente seus olhos se encontravam. O Fauno sorriu.
Era um convite? Já conhecia as armadilhas, mesmo assim, recuou assustado. Ele
não sabia por que, mas tinha certeza que o homem não ia denunciá-lo à sua mãe.
Qualquer outro vizinho iria reclamar da bisbilhotice, mas ele não. E Davi tinha
mais medo ainda disso. Não ia mais poder ver sem ser visto, na segurança de seu
refúgio. Estava exposto. Não podia esconder que olhava, que gostava de olhar, que
precisava olhar. E, se olhava, queria mais, queria tocar e abraçar e se fechar
no quarto com as janelas fechadas, tudo apagado e secreto. Mas podia? Aquela
era uma roupa que ainda estava folgada e que não sabia direito como usar. E se
aquele sorriso não fosse pra ele, e se fosse dele, um prenúncio de gargalhada?
Já imaginava o Fauno e Absoluta Taylor rindo dele no quarto fechado, achando-o
ridículo em suas roupas largas, a capa de super-herói arrastando no chão, sem
voar, a cartola engolindo sua cabeça. Ele só queria fugir dali e se esconder. Se
seu refúgio tinha sido descoberto, restava sua casa apesar de tudo. Desceu a
escada correndo sem nem olhar para as janelas dos apartamentos. Ele sabia que
estariam todos ali amanhã, sabia que voltaria já refeito do susto. Mas não foi
assim que aconteceu.
Nos dias seguintes, não pôde sair de casa. Morena, a gata da vizinha,
apareceu morta e a dona acusou o pequeno Davi de a ter maltratado. Ele foi
proibido de sair de casa uma semana. Não podia fugir. Era como se o destino
tivesse resolvido marcar o final daquela infância. As brigas, os gritos iam
ficar para sempre em sua lembrança. Quando voltou ao alto da escada pela última
vez, depois de tantos dias preso, já não encontrou as janelas abertas, nem as
do Fauno, nem as de Absoluta Taylor. Quis pular do prédio, quis ter o poder de
voar, mas não tinha. Quando recolheu os pés do buraco na parede, sabia que
nunca mais ia vê-los. Sua história a partir daquele momento seria outra. Uma
outra vida longe dali, sem uma casa de onde fugir, sem a escada como abrigo.
Tudo seria uma coisa só, dentro ou fora. Foi descendo as escadas lentamente, a
capa se arrastando pelo chão sujo. Tinha pena de nunca mais ver o Fauno e de
nunca mais sentir tanto desejo. Os desejos seriam outros. Tão fortes quanto?
Outros. Davi sempre guardaria cada sensação, aquele único toque, aquele sorriso,
a voz.
— Machucou?
Quantas vezes depois quis responder àquela pergunta. Ninguém escapa de se
machucar nessa vida, pensou um dia, muito tempo depois. Muito tempo depois,
ainda tinha pena de não ter ganho o chapéu de mágico e de não ter entendido
quem era Absoluta Taylor. Com os anos, sua sala ficava mais e mais colorida na
memória, com sues vestidos fantasiosos. Soube dela um dia, bem depois, através
das lembranças de outras pessoas, mas já era tarde para revê-la. Teve pena de
Dona Heloísa e sua gata Morena e todos os vizinhos que nunca mais veria. Sua
capa se arrastou por cada degrau daquele Edifício, como se resistisse a largar
uma pessoa querida. Davi também resistia a deixar o prédio, apesar de tudo que
aconteceu. Nem mesmo quis ir ao enterro do pai, mas agora, depois que sua mãe
tinha sido levada pelos soldados, não podia mais ficar. Chegou à entrada do
edifício, onde sua tia o esperava, resignado.
— Ah! Aí está você, meu querido.
Ela afagou sua cabeça. Era tão parecida com a mãe dele.
— Bonita capa! Vamos, seu tio está esperando. Pelo menos você vai sair
desse lugar horrível!
Lugar horrível. Foi a primeira vez que Davi pensou naquele prédio como um
lugar horrível. Não era assim que pensava até então. Todo o seu mundo se
resumia àquilo. De algum modo, apesar dos pais, ele não sentia que fosse tão
infeliz. Uma criança tem sempre todo um mundo secreto que a protege do mundo
real. O mundo dele era repleto de faunos, ninfas, mágicos e heróis. Deu uma
última olhada. Eles desceram a escadinha da portaria e chegaram à rua. Alguns
moradores observavam pelas janelas. A do seu apartamento estava fechada. Era um
dia de janelas fechadas. Na calçada, um vento forte soprou levantando poeira e
cegando o menino. Sua capa foi erguida. Por alguns instantes ele experimentou o
vôo. Teve vontade de nunca mais abrir os olhos, de ficar pra sempre como se
voasse, bastava ter pensamentos felizes: uma mão surgiu de sua lembrança e o
levantou no ar. Machucou? Davi sentia que nada no mundo podia machucá-lo.
In Eros resoluto, 2010, P55 edições.
Crônica de Affonso Romano de Sant'Anna citando conto "A omoplata"
O escrito Affonso Romano de Sant'Anna publicou a crônica abaixo em que fala de meu conto "A omoplata", que está publicado no livro EROS RESOLUTO. Infelizmente, a crônica vem a propósito de um fato muito triste: a morte do escritor Wilson Bueno, em Curitiba.
SEXO, FACA E MORTE (CRÔNICA)
Postado por Affonso Romano, em 05/06/2010, às 23:25
Há alguns anos o diretor de teatro, Luiz Antônio Martinez Correia (irmão de José Celso), que morava aqui perto de minha casa, em Ipanema, foi assassinado com facadas.
Há alguns anos, Aparício Basílio, artista e amigo, conhecidíssima figura do soçaite de Rio e São Paulo foi assassinado da mesma forma em São Paulo.
Há alguns anos, meu amigo Almir Brunetti, também morreu esfaqueado em Brasilia, Conheci-o primeiro em New Orleans, onde ele era professor, e depois o revi várias vezes na Universidade de Brasilia e no Rio.
Com algumas variantes, ocorre-me a lembrança do memorialista Pedro Nava, do editor Emanuel Brasil e do meu aluno Maurício que escreveu uma tese sobre "O duplo".
Esta semana morreu esfaqueado em Curitiba o escritor Wilson Bueno, que também conheci. Ele é autor de alguns livros instigantes, dirigiu o jornal "Nicolau" e escreveu um livro prevendo a futura mistura do português e do espanhol.
Faca, sexo e morte.
Que estranha atração imanta essas palavras e estraçalha vidas?
Que percepção patética teve Freud quando decifrou alguns dos símbolos que organizam nossas pulsões?
Pois há alguns meses li um conto de Marcus Vinícius Rodrigues intitulado "A Omoplata" e fiquei impressionado, impressionadíssimo. É um dos mais tocantes e bem escritos textos sobre essa nebulosa margem entre o crime e o amor, entre o desejo e o perigo.
Eu havia conhecido Marcus Vinícius há uns dois anos quando fizemos, com outros escritores, uma série de conferências no interior da Bahia. Mas só vim recentemente a ler aquele conto sobre a relação erótica entre um homem e um "menino". Semana passada, por coincidência, em Salvador ele assistia a uma palestra minha e me deu esse conto publicado num livrinho "Eros Resoluto" (Ed.Cartas Baianas).
O conto, como uma navalhada na carne, é de uma precisão fatal. Começa com uma indagação: "E essa cicatriz?". E faz uma pequena descrição de uma cicatriz que um dos amantes tem na omoplata. "Ele passou a mão pela omoplata esquerda do outro. Era um risco em diagonal. Começava perto do ombro, o esquerdo, e ia descendo e se aproximando da coluna. Ele estava deitado de costas na cama. O outro, de bruços sobre ele, as pernas sobre seu ombro direito, abraçado em suas pernas. Nus. Ele acariciava o corpo do outro, as coxas, a bunda, as costas, numa lenta preguiça.
-Parece que lhe arrancaram uma asa".
E o conto prossegue numa atmosfera ambígua, difusa em que sexo, ameaça e perigo se atraem.
A cicatriz parece feita com faca. É uma sugestão. O texto é cortante. O menino parecia um anjo e um anjo perverso. Corpos e mentiras se entrelaçam. A cicatriz lembrava corte de faca, mas podia ser o esforço para se implantar ali uma asa de anjo. Tudo era falso e verdadeiro: "encontrado na rua, um menino que poderia ser um assaltante, tão falsa aquela história do colégio de freiras" que teria originado a cicatriz.
E a história vai para seu desfecho trágico, não narrado diretamente, mas sutil e inteligentemente sugerido. Depois de diálogos, brincadeiras, ameaças veladas e declarações de amor, o personagem dirige-se à cozinha onde nota a ausência de uma faca. "Na ordem absoluta havia apenas uma falha: a gaveta de talheres imperceptivelmente entreaberta. Um alarme estourou na sua cabeça. Ele não abriu a gaveta, mas o que não via se mostrava nítido em seus olhos. Parecia tão claro. Todas as cenas voltaram como um relâmpago. As conversas. Tudo em velocidade, até um momento se fixar. O sorriso do menino tilintando atrás de uma frase:
-Quem te salva?
Ele lembrou. Num instante rápido, quis que nada disto tivesse acontecido, queria não ter se deixado levar por... Devia ter tomado mais cuidado. Queria retroceder, escapar, mas tinha ido longe demais, já estavam num ponto em que não se pode mais voltar".
(*) Estado de Minas/ Correio Braziliense
quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015
quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015
segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015
segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015
A mais bela flor da alma
E depois ... Ah! Depois de dores tamanhas,
nascerás outra vez de outras entranhas,
nascerás outras vez de uma outra mãe!
Florbela Espanca
Quando abro o Livro de
Mágoas desta outra que também sofreu e encontro a flor perdida entre as
páginas, morta, ressequida, suspensa no tempo, sinto ainda aquele cheiro de
minha infância. Eu andando pelo corredor, então comprido, as meias escorregando
pelas pernas, o vestido de festa já encolhido de meus anos que passavam. Tão
pouco uso e já perdido. Quase virgem. Eu também, que alguma apreensão já se
entranhava na alma. As pessoas falavam baixinho. Um murmúrio solene de
capela. Doía-me na barriga, bem lá embaixo, uma dor fina e
desconhecida que às vezes me fazia torcer o vestido que encurtava. Não via
minha mãe, não via meu pai, só desconhecidos que olhavam a minha passagem. Ao
centro de nossa sala de jantar estava a caixa negra, comprida, colocada sobre a
mesa. Não podia ver, pois ainda não era tão alta. Nem precisava, que já sabia
da morte ali deitada, a ausência para sempre de que falou minha mãe. Deus chama
primeiro os bons... Naquele momento meu coração estava vazio, eu estava vazia
dentro daquele vestido de festa; só aquela dorzinha fina me avisando de dores
maiores, flores pelo chão e aquele
cheiro que me perseguia deste aquele dia.
O mundo ainda desconhecido, uma gravidade adivinhada. Meu irmão, morto.
Eu sabia que aumentaria a solidão de nossa casa, que já era muita, isolados que
vivíamos naquela distância. Meu pai, minha mãe, eu e Jacinto. Uma flor. E eu
também. Vou te despetalar todinha, Margarida, dizia, me fazendo cócegas. E eu
ria e tentava me soltar, correndo pelo jardim de nossa mãe. Nesse podíamos
passear. Além da cerca ficavam as outras flores, as de nosso pai. Essas nós
víamos pouco. Essas não são flores, ele dizia, são nosso ganha-pão. E ficávamos
admirando de longe as flores que eram pra vender. Todas iguais em suas
fileiras. Recebiam água na hora certa, eram cobertas em noites frias, tão bem
cuidadas. E quem é que precisa comprar flor, Jacinto? Elas nascem tão fácil é
só esperar a época. É o povo da cidade. Lá não tem jardim, sabia? Só um monte de prédios altos, asfalto,
cimento. Por isso as pessoas compram
flores. Compram para pôr em casa, num vaso, compram para dar de presente. Eu
queria conhecer a cidade. Não pode, você é criança. Mas você já foi lá. Comigo
é diferente, eu já sou grande. Era verdade. Jacinto, mais velho, de repente
ficou mesmo muito mais alto que eu. As pernas ficaram compridas e começaram a
ter uns pêlinhos. A voz ficou diferente, mais grossa, passou a não brincar comigo como antes. Nessa época,
passou a ajudar nosso pai. Eu tinha inveja dele naquele mar de flores o dia
todo, tantas que não sabíamos mais qual o cheiro de cada uma. Todas se
misturavam e era como se estivéssemos sempre mergulhados num vidro de perfume.
Eu tinha saudades de nossas brincadeiras, sua falta me doía o dia inteiro,
esperava ansiosa o fim da tarde, quando
ele voltava trazendo um botão de alguma flor diferente. Essa é do seu tamanho,
ele dizia. Eu guardava a flor, ela ia abrindo as pétalas dia a dia até ficar
plena, madura, a cor brilhando úmida. Depois apagava, murcha, as pétalas iam
caindo e morria, vazia de qualquer cheiro. E nesse dia Jacinto já me trazia uma
outra flor em botão. Meus dias passavam como aquelas flores. Nascia na mão de
Jacinto e morria na sua ausência. Seu olhar, seu toque eram como água e luz
para mim: meu querido irmão.
Um dia, tanto insisti que
Jacinto me levou para brincar no campo de flores. Era um final de tarde quente,
saímos correndo pelos corredores perfumados.
Ele dizendo que ia me pegar. Vem cá sua flor fujona, vou te colocar de
novo no vaso. Uma flor bonita dessa dá boa venda. Eu corria, corria, até que
ele me alcançou. Ele me pegou e começou a fazer cócegas, rolamos pelo chão no
corredor das margaridas, eu tentava me soltar, mas ele estava mais forte ainda,
fazia cócegas montado sobre mim, seu corpo pesado, eu não agüentava mais. Pedia
pra ele me soltar, mas ele não me ouvia. Apenas insistia seu corpo sobre mim.
Tudo ficou confuso, já não sabia mais o que acontecia, um cheiro se destacou
dos perfumes das flores, cheiro quente, salgado, saindo dele, tocando minha
pele, percorrendo todo o meu corpo como uma eletricidade. Eu me sentia feliz,
feliz com meu Jacinto, meu querido irmão, meu querido amor. Eu ria, chorava,
tudo girando em minha volta. Acho que gritei, acho que senti dor, não lembro,
tudo escurecia no corredor das margaridas, e tudo mesmo me embalava como num
sonho, eu ria, gargalhava, gritava e acho desfaleci.
Acordei em minha cama, uma
febre sem razão. Jamais vi Jacinto de novo. Viajou, disse meu pai. Sua voz era
severa, como quando dava broncas na gente. Minha mãe chorava pelos cantos e eu
não sabia o que acontecia. Esperava todas as tardes ele voltar, e nada. Vi o
tempo passar, vi mudarem as flores da época. Nada. A última flor que ganhei
guardei dentro de um livro de histórias até que secou. Ela passaria, depois, de
livro em livro até aquele que traz a perfeita tradução de mim. Um dia, minha mãe
me chamou no seu quarto, estava com um
álbum de fotos aberto, eram fotos nossas quando Jacinto ainda era pequeno como
eu. Ela, então, me contou que ele tinha
morrido. De acidente, ela disse, na cidade. Tinha uma voz trêmula, incerta, e
quando eu perguntei como tinha sido, me abraçou e chorou, tanto que minha
tristeza se acalmou. Veio o caixão, as pessoas estranhas, trouxeram flores que
não eram as nossas. Flores feias e tristes. E voltou aquele cheiro no meu
nariz. Cheiro de Jacinto. Rezaram, cantaram, choraram. Por fim, saiu o caixão
de nossa casa. Eu fiquei sozinha, esperando ainda que meu coração se enchesse
daquela presença que eu lembrava. Meu coração era como um jardim sem flor.
Todas as flores do mundo estavam agora enterradas.
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