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segunda-feira, 2 de setembro de 2013
domingo, 9 de junho de 2013
Cada dia sobre a terra: terça-feira
TERÇA-FEIRA
Os
soldados marchavam em fila indiana pela via exclusiva para ônibus, mais alta
que o nível da avenida, e usavam as fardas típicas da Tropa de Choque, com
escudos e cassetetes. Já se aproximavam da estação de ônibus do Iguatemi,
quando começou o coro: marcha soldado,
cabeça de papel. Se não marchar direito, vai preso pro quartel... Um coro
de adolescentes recebia com palmas os soldados. Eles não vieram de carro até
ali porque todo o trânsito da região estava parado. Os estudantes tinham fechado
a ligação entre a região do Iguatemi e a Avenida Paralela. Com cartazes pedindo
a diminuição do valor das passagens de ônibus, eles invadiram as ruas e
bloquearam o trânsito. Eram muitos e deitaram no chão, fizeram correntes
humanas de braços dados, dançaram cantando músicas de roda, como crianças, e,
agora, cantava para os soldados que chegavam. Tinha sido assim por cinco dias,
desde que os protestos começaram, mal a nova tarifa foi anunciada.
Antônio
se lembrava da primeira reunião no grêmio, os colegas falando em ir pra rua
protestar, uma grande passeata até a prefeitura ou para a estação da Lapa, até
que alguém teve a ideia de começar ali mesmo em frente à escola. Fechar o
trânsito, parar tudo. Um grupo de alunos mais velhos tomou a frente e fechou a rua.
Antônio os acompanhou, mas não se pode dizer que fazia parte do grupo.
Acompanhava. Ia pelas beiradas, seguia. Foi assim que ficou na calçada, bem no
meio fio, de onde seguia os gritos dos outros, as palmas e as músicas. Mesmo
com tudo parado, ele não ultrapassava aquela linha que separava o lugar dos
pedestres do lugar dos carros. Não podia avançar. Não se sentia capaz de mais
um passo, de seguir além daquele ponto.
— Você
não vai pro meio?
Lúcia, a
Lucinha, lhe chamava. Ela só agora tinha chegado e já se entregava à
manifestação, uma coragem sem estratégias. Apenas ia na corrente de colegas,
dentro. Seguia e guiava. Chamava com as mãos o amigo de infância, parou até um
instante para esperar, mas logo foi levada pelos outros que a abraçavam e
sumiu-se no meio de todos.
Antônio
ficou no meio fio durante toda a manifestação, até que a tarde acabasse e o
cansaço se intrometesse na vontade dos colegas. Era, também, hora de voltar
para casa. Aquela rebeldia toda limitada a uma tarde. Rebeldias vespertinas. Já
no caminho de volta, eles ficaram sabendo que por toda a cidade, naquele dia,
tinha acontecido algo parecido. Os estudantes tomavam as ruas e paravam os
carros.
— Mas nós
fizemos primeiro, disse Júlio, o aluno do terceiro ano.
Antônio
olhava admirado o colega mais velho. Ele já ia sair do colégio e já trabalhava
de manhã na lojinha do pai. Era um adulto. Antônio tinha acabado de chegar ao
ensino médio. Estava no primeiro ano, mas ainda se sentia um menino de ginásio.
Ainda não tinha dado o esticão de que sua avó tanto falava.
— Daqui a
pouco esse menino dá um salto e fica maior que o pai.
Nessas
horas, seu pai se enchia de orgulho antecipado
— A
molecada de hoje cresce mais rápido. Também, comendo com comem!
Dizia isso e botava seu quepe de militar na cabeça
do menino, enfiando de propósito até cobrir os olhos do garoto para depois
sacudir a cabeça. Era o gesto máximo de carinho que podia fazer, agora que o
filho estava mais crescido. Era um homem, ele dizia, e homem não abraça. Nem
sempre foi assim. Quando criança, o pai o carregava para todo canto, no colo ou
debaixo do braço como se fosse um embrulho, ou nos ombros. Antônio gostava de
ficar assim mais alto que todo mundo. Nos ombros do pai estava protegido e
podia roubar os bonés dos irmãos mais velhos.
— Deixa
seu irmão. Ele é criança.
Era só
isso que ele falava quando os irmãos vinham tentar tomar os bonés de volta ou
quando tentavam revidar. E ele roubava o boné de um dos irmãos e passava o dia
inteiro tentando equilibrar na cabeça, ainda pequena. A todo momento ele lhe
caía nos olhos. Ficava assim até o irmão conseguir tomar de volta. No dia
seguinte, tudo de novo.
Quando os
irmãos resolveram esconder os bonés no alto do guarda-roupa, o pequeno Antônio
não teve medos. Subiu pelo beliche e de lá saltou para o alto do móvel. Nada o
impediu de seguir seu desejo e ter o que queria. Lá em cima, deu-se conta de
que não saberia descer. Só então chamou a mãe. Naquele dia, ficou de castigo e
finalmente foi proibido de pegar os bonés dos irmãos. Antônio lembra que chorou
o dia inteiro, até vir o pai. Foi nesse dia que ele lhe ensinou a fazer chapéus
de soldado, daqueles em que se dobra um papel várias vezes até formar um
triângulo que se abre para colocar a cabeça. Um chapéu que, se você erra o
caminho nas dobraduras, pode virar um barco. Era o que ele fazia nos dias de
chuva. Abandonava os chapéus e fazia barquinhos para deixar correr nas águas
que desciam a rua até lá embaixo na esquina que se dobrava pra esquerda e
descia até a avenida. Mas todo tempo tinha um chapéu de jornal montado, uma
espada de madeira e uma música na cabeça. Aquela mesma que os colegas cantavam
agora em plena rua. Ele, na calçada de novo.
Tinha
vindo com Lucinha que lhe carregava pra todo canto. No domingo ela tinha se
enfiado em sua casa a tarde toda. Queria estudar com ele tirar dúvidas de
matemática e de física. Por isso ficaram a tarde inteira no quarto.
— Quem
inventou isso, meu Deus? Pra quê?
Ela
suspirou e jogou o livro no colo de Antônio. Calmamente, ele explicou cada
parte do problema e montou a fórmula como o professor tinha ensinado.
— Viu
como é fácil?!
Ela
colocou o dedo indicador na cabeça dele e ficou cutucando de leve.
—
Tontinho, você é demais.
O dedo
desceu para o pescoço, ainda cutucando levemente. Depois desceu mais ainda, até
que ela passou a fazer cócegas no garoto.
Ele tentava se desvencilhar sem conseguir, ela pulou em cima dele e
continuou na operação, ele segurou seus braços, mas ainda assim ela continuava.
Apenas quando ele pulou fora da cama ela desistiu. Ele a sentia muito próxima
nessas horas, uma proximidade que lembrava os tempos de criança, os dois juntos
o tempo todo, como naquela foto da bacia, os dois bebês ainda, tomando banho
juntos. Era assim que ele a via, sem mais que isso, ou assim pensava. Ficava
tímido. Não sabia ao certo quando tinha deixado de ser extrovertido, alegre,
corajoso. Sabia apenas que não queria falar com ela do que se passava com ele.
As mudanças todas. Está ficando homem, dizia o pai, mas não sabia bem como
fazer isso. Os irmãos, mais velhos, estavam sempre muito mais adiantados no
crescimento. Eram adultos agora. O pai lhe cobrava uma namorada. Às vezes
queria que ele não brincasse mais com a amiga, às vezes perguntava se estavam
namorando. Namoro ou amizade? Perguntava. Homem não é amigo de mulher. Antônio
nada dizia.
Lucinha,
por outro lado, parecia que tinha nascido pra ser adulta. Quando começou a ter
peito, não escondeu. Ela não escondia nada. Na aula de biologia foi a primeira
a falar como seu corpo tina mudado. A desculpa era falar que sentia dores na
barriga, cólicas.
— Isso é
normal, professor? Só porque menstruei?
Ela não
sentia nada. Queria apenas exibir a novidade, contar detalhes, mostrar que já
era mulher. As outras meninas todas envergonhadas. Ele, envergonhado. Ainda
mais quando diziam que ele era o namoradinho dela. Assim diziam as meninas, já
os meninos, diante de seu jeito tímido, perguntavam como seu paia fazia.
— É
namoro ou amizade?
Todas as
insinuações feitas na simples frase.
Se ele
fosse ainda criança, teria respondido com um pontapé para cada pergunta. Era
muito brigão quando era pequeno. Valente. Gostava de brincar de guerra com os
meninos da rua. Brigava com quem se metesse com ele. Viveu assim até que aos
onze anos sua mãe resolveu lhe oferecer para apadrinhamento. Teria seu
padrinho, senhor da guerra, para guiar seus impulsos, acalmar seus ânimos de
brigar e protegê-lo dos inimigos que criava.
Foi
levado à casa de uma vizinha do bairro, bem no fim de linha do Pernambués. A
casa era no final de uma pequena avenida, numa encosta, uma casa normal. Abaixo
da cozinha, como um porão, a mulher tinha um lugar em que guardava seus santos.
Era como se fosse uma pequena casa com sala, quarto, banheiro e cozinha, tudo
pequeno, espremido entre a casa grande em cima e um quintal que e descia a
encosta. Dali se podia ver lá embaixo no vale uma horta verde, toda retinha
entre as casas que rareavam no meio do mato. Antônio foi então oferecido ao
santo, entre rezas e cantos e incensos. Em meio à cantoria, a velha senhora se
debruçou sobre o menino. A voz tinha mudado, os olhos semicerrados sequer o
viam. O abraço veio ríspido. Um abraço apertado em que lhe disse no ouvido uma
série de coisas que o menino, assustado, não conseguiu lembrar mais depois que
saiu dali. Não dormiu bem aquela noite, apavorado com as palavras. Vinha o
sonho um homem alto, negro, mais alto e mais negro que o pai. Vinha nu. O menino tentava ver seu rosto e não
conseguia. A cabeça ficava distante, mais alta. Queria ver também no meio das
pernas, mas sempre que fixava ali o olhar, sua vista escurecia e parecia que
via um abismo, como o poço na casa da avó. Vinha a voz e repetia as palavras da
velha, uma voz forte de homem e, então, o menino acordava.
Ficou
assim um tempo, ouvindo em todo canto aquela voz. E era tão nítido o que ela
dizia, tão claro como o sol, e quando acabava, já não conseguia repetir. Tinha
a sensação de que a qualquer momento podia voltar toda a memória, tudo tão na
ponta da língua, como o nome de um artista muito famoso que a gente esquece de
repente. Algo tão perto e tão familiar e que não se pode alcançar. Era assim
que se sentia sempre que estava na rua. Ouvia, entendia e não lembrava. Um dia,
voltando da escola, viu-se, sem saber, no caminho contrário ao de casa. Não
conseguiu compreender como tinha se distraído e seguido por ali. Aconteceu como acontece às vezes com alguém
que faz sempre o mesmo caminho e que, tendo de fazer um caminho diferente, se
distrai e faz o caminho habitual, só se dando conta quando já vai longe no
erro. Assim aconteceu com ele, mas ao contrário.
O que
pode pensar uma criança que não sabe aonde vai, que mira um lugar a seguir e,
distraído, aparece em outra rua ou numa praça longe de casa? Antônio ficou com
medo de si mesmo, de ser levado a algum lugar perigoso. Não sabia o que fazer
com aquilo que lhe acontecia. Retraiu-se. De menino levado virou um adolescente
retraído. Aos poucos foi se afastando do pai. Não era mais a criança dos afagos
e não virou o companheiro que ele esperava que surgisse com a idade. O filho
caminhou para o outro lado. Abandonou a rua e trancou-se no quarto, refugiou-se
nos livros da escola, esses mesmos livros que Lucinha lhe jogava no colo, como
quem joga uma isca ao peixe. Queria tê-lo novamente como companheiro de
brinquedos e aventuras, queria, talvez, experimentar tê-lo como namorado, mas
ele se esquivava de todas as suas investidas. Não se afastava inteiramente,
apenas mantinha-se a uma distância segura, ainda o amigo, mas atrás, seguindo-a
de perto. Foi assim que ele a seguiu aquela terça-feira à tarde pela ladeira
que liga o fim de linha do bairro ao Iguatemi. Os colegas da escola queriam
parar o trânsito lá embaixo, por onde todo mundo passava, onde todo mundo via.
Lucinha
lhe chamou decidida. Queria ir, mas queria ir com ele. Que graça tinha tudo aquilo
sem ele ao lado. Ele ainda tentou argumentar sobre o risco. O movimento tinha
crescido tanto, na televisão só se falava em botar a polícia para dispersar os
estudantes. Tinha isolado o centro, a estação da Lapa, mas de nada adiantou.
Era difícil prever de onde viria um novo bloqueio. A polícia não dava conta,
era verdade, mas se chegasse para abrir caminho, não ia parar antes de
conseguir. Não ia acabar bem
— Vai
todo mundo preso. E daí?
— Daí que
eles podem nem prender a gente. Podem bater.
Ela
perguntou se ele tinha medo. Com a pergunta vinha um olhar duro que o
imprensava numa parede imaginária. Ele precisou dizer que não, que não tinha
medo, que não era de ter medo. Disse rápido, sem pensar muito naquilo que dizia
para não se trair. Se pensasse que tinha de fingir que acreditava no que dizia,
não ia conseguir. Disse não e com esse
não liberou um sim apara Lucinha, um sim que parecia maior que o momento que
viviam. Ela sorriu e o agarrou pelo braço. Sentia-se liberada para tudo. Tinha
recebido um sim, uma permissão que há tempos não recebia do amigo de infância,
do namorado que queria.
Os
estudante já estavam todos reunidos na esquina do posto de saúde. Dali
desceriam a ladeira em direção ao Iguatemi, iam decididos, em algazarra
completa. Quando passaram pelos motéis lá embaixo, os meninos resolveram puxar
algumas meninas como se fossem entrar com elas recepção a dentro. Algumas
brincavam também e iam até a porta, outras fugiam envergonhadas. Antônio só
olhou para Lucinha e riu.
— E aí,
Tontinho?! Não me convida?
Ele ficou
envergonhado. O rosto todo vermelho. O corpo suava dizer que não pensava nessas
coisas não era verdade. Pensava. Mas com Lucinha os pensamentos eram confusos.
Não sabia bem o que sentir. Não olhava para ela como olhava para as outras
meninas, não fantasiava sexo com ela, mas não podia se imaginar sem ela. Era
como se ela fosse sagrada. Para responder à brincadeira dela, brincou também.
— Você
merece coisa melhor, suíte de luxo.
— Hum! Tô
podendo!
Ela riu e
fez um ar orgulhoso. Nesse momento outras meninas a levaram. Formou-se um grupo
de meninas que corria na frente para fugir dos meninos. Elas faziam sua parte
no jogo.
A frase
de Antônio foi a melhor resposta que ele podia ter dado a si mesmo. Coisa
melhor. Era de outra natureza o que sentia por Lucinha, algo ainda mais difícil
do que o que tinha sido despertado nele com a idade. Ainda era preciso
entender, mas gostava de saber que tinha isso dentro de si.
Correu
com os colegas atrás das meninas, passaram pela madeireira, foram até a
rodoviária e alcançaram a passarela. Estavam perto. Alguns deles queriam parar o trânsito ali
mesmo.
— Aqui
não. Do lado de lá, em frente ao shopping.
Alguém
falou com voz de comando. Eles atravessaram a passarela já cantando palavras de
ordem. Não havia nenhum carro da polícia à vista. Desceram em frente ao
shopping e se posicionaram bem embaixo da passarela. Ali é que começaram a
invadir a rua. Quando o sinal fechou lá adiante, aproveitaram para marchar para
o meio, todos de mão dadas. Gritavam contra a tarifa alta, cantavam, dançavam.
O trânsito aguardava. Os carros aguardavam. A eles se juntaram outros
estudantes, vindos não se sabe de onde. Alguém teve a ideia de fazer
brincadeiras de roda. Ciranda,
cirandinha... deram-se as mãos e rodaram. Depois, ainda em roda, soltaram
as mãos e cantaram sambas... quem entrou
na roda... Lucinha foi a primeira a ir para o centro. Sambava com passinhos
miudinhos para trás, segurava com as mãos uma saia imaginária e girava. Na hora
de chamar outro para a roda, procurou Antônio, seu Tontinho. Ele podia vê-la de
longe em sua busca. Ela desistiu e chamou uma amiga. Voltou ao círculo e
continuou batendo palmas. Antônio não estava com eles. Continuava no meio fio,
na fronteira dos pedestres. Apenas observava toda a algazarra. Não sabia como
atravessar aquela barreira.
Foi então
que vieram os soldados marchando pela via exclusiva dos ônibus, vieram com seus
cassetetes, que batiam nos escudos em ritmo marcial, um sincopado ensurdecedor,
como que anunciando o que fariam se não fossem obedecidos. Os estudantes,
porém, começaram a cantar e bater palmas: marcha
soldado, cabeça de papel. Se não marchar direito, vai preso pro quartel... Cantavam
cada vez mais alto, abafando o som dos escudos. Ficaram assim alguns minutos,
num duelo de sons, até que os soldados pararam de bater os cassetetes. Uma
ordem do comandante e eles desceram e se enfileiraram em frente aos carros.
Dava para ver que a ordem era dispersar todo mundo, liberar o trânsito. Um
policial tentava se fazer ouvir pelos estudantes, mas eles continuavam a dançar
e cantar. Foi nesse momento que uma moto passou entre os carros e avançou. Por
uma brecha entre os soldados e os jovens, ela avançou. Ninguém pareceu perceber
o que acontecia, apenas Antônio, de longe, parecia ver o que ia acontecer. A
moto se lançava de encontro a Lucinha, que dançava distraída.
Neste
momento, Antônio se lembrou da voz da velha senhora em seu ouvido, bem perto e
sussurrado, o padrinho lhe prometendo estar sempre presente, ao seu lado, para
a luta que viria. Sempre vem uma luta, meu filho, cada dia sobre a terra deve
ser vencido como numa guerra. É preciso pisar firme, os pés sabem. Tudo voltava
na lembrança do rapaz, as caminhadas perdidas, o chamado que ouvia. Sentiu nas
pernas uma sensação que nunca tinha experimentado, uma calor, uma força nova,
que o fez correr muito rápido. Saltou para além do meio fio sem mesmo pensar o
que ia fazer. Ninguém percebeu bem que ele chegava, apenas viram que a moto
caía no chão, tombada de lado, e rodopiava sem seu piloto. Ali, mais adiante,
Antônio o segurava. Ninguém viu que ele tinha saltado sobre a moto, com um pé
na roda dianteira desviou a direção, e ainda puxou o piloto. Com outro rumo,
agora, a moto atingiu um policial nas pernas. Fez-se o caos. Os estudantes
avançaram para a tropa com mochilas e cadernos. Os soldados só se defendiam,
surpresos. Lucinha também avançou, mas foi impedia por Antônio que lhe segurou
pelo braço e a arrastou para a calçada.
— Vai pra
casa!
Ela quis
responder, brigar, mas ele falava com uma voz firme, grossa, voz de adulto em
comando.
— Vai!!!
Ela
correu para a passarela. De lá, viu Antônio, seu Tontinho, voltando para a
confusão. Ele não enfrentava a polícia, apenas tirava, um a um, seus colegas da
briga. Arrastava pra longe, brigava, até batia, mas não deixava que voltassem.
Ela viu ele fazer isso várias vezes, até que chegou mais policiais e os
estudantes começaram a se dispersar. Antônio e seus amigos fugiram pulando as
grades da via exclusiva para ônibus. Do alto, Lucinha seguia atrás deles,
enquanto observava admirada como Antônio liderava o grupo, esperando que cada
um saltasse as grades para só então seguir e avançar e escolher por onde ir e
indicar aos outros e esperar todos passarem de novo. Ele guiava e protegia, à
frente ou atrás, conforme sentia que devia ser. Quando ela chegou ao outro lado
da passarela, ele estava esperando.
— Vamos!
Ele a
pegou pela mão e começou a correr. Ela só podia acompanhar. De vez em quando,
olhava para ele, que seguia sério, olhando para frente.
Antônio
não sentia nada de especial, como se aquela explosão de seus músculos e de sua
voz estivesse sempre ali. Não se sentia mais velho, mais forte ou adulto e
podia até imaginar que aquilo era uma grande brincadeira e que usava um belo chapéu
feito de papel de jornal.
sábado, 8 de junho de 2013
domingo, 21 de abril de 2013
111
Chamas
nas grades
abertas.
Chamam-se
nomes
ao gritos.
111 nomes,
111 filhos.
Sem resposta.
In "Pequeno inventário das ausências". Salvador: Fundação casa de Jorge Amado, 2001.
sexta-feira, 29 de março de 2013
Ao leitor
Decide por mim esse verso,
que o dia se faz pressa.
Hesitar é interdito e
as horas reclamam passar.
Decide a rima, sentencia a métrica,
que não há mais o que eu possa.
Todo o poema implora
um leitor que o faça.
segunda-feira, 25 de março de 2013
O ESCRITOR É UM MENTIROSO
Eu queria falar das técnicas para prender o leitor, mas, enquanto
abria o computador, o texto avançou na minha cabeça e acabei concluindo o que
diz o título. Comecemos do começo:
Tenho refletido muito sobre esse conflito entre a experimentação
da linguagem e a contação da história. Há uma preocupação muito grande com isso
hoje em dia e aqui no Brasil principalmente. Temos uma tradição de uma
linguagem bem cuidada e de se buscar experiências inovadoras. A sombra é muito
grande e espessa sobre os novos escritores. Cito apenas três de nossos grandes:
Machado, Rosa, Clarice. Nossa medida de
qualidade tem de se posicionar diante dessa régua impossível.
E, assim, muitos escritores se lançam na experimentação e
esquece o leitor. Como todos sabem, apesar de termos esses grandes escritores, o
país não foi treinado para lê-los. Há uma dificuldade generalizada para ler
frases simples e diretas. As invencionices do escritores? Nem pensar.
Então, é preciso pensar estratégias para agarrar o leitor no
começo do texto. Veja! Não digo seduzir.
Digo agarrar, pelo cabelo, pelo pescoço, e conduzi-lo até a última página. Aí,
sim, no meio do caminho, enlouquecer na linguagem.
A melhor técnica para fazer isso, na minha opinião, é a in media res (no meio das coisas). Aprendi
essa técnica com lendo Lygia Fagundes Telles e foi Suênio campos de Lucena quem
ma nomeou. É simples, começa-se do meio, do momento mais tenso, e retorna-se em
flashback. Volta-se até o meio e caminha-se me velocidade para o final. A outra
possibilidade é fazer do início: ab ovo
(desde o ovo) ou ab initio. Nesse
caso é preciso ter um bom começo.
Fiz in media res
muitas vezes. Depois, por me dar conta de que fazia, forcei-me a não fazer.
Nesse meu último livro (inédito), a maioria dos contos não usa a técnica. Eu estava
pensando isso ali deitado, quando resolvi escrever sobre. Mas o pensamento
andou e acabei me dando conta de que estava mentindo. Os contos estão na
cronologia certa, mas o livro não. É um livro de contos que acompanha a vida de
quatro ou cinco personagens. É um quase romance — tem protagonista e tudo, mas
em forma de contos. Acontece que datei os contos, que vão de 1964 até 1978. E
não é que eu começo em 1976? In media res.
Eu sou um mentiroso.
E já minto faz tempo.
No meu primeiro livrinho de contos, o 3 vestidos e meu corpo nu, também minto. Os 3 vestidos são contos inspirados/influenciados por escritoras. Há epígrafes explicitando. O quarto conto, A noite de cada um, faz as vezes do “corpo nu”, o escritor sem influências. Tudo mentira. É o conto mais intertextual: desde o título, “roubado” de Julien Green, que por sua vez se inspirou em um verso de Victor Hugo.
Literatura é um jogo de esconder. Queria muito saber como meus amigos escritores montam seus textos. O que está escondido nos bastidores.
quarta-feira, 13 de março de 2013
A ESTRUTURA DA BOLHA DE SABÃO
Para Lygia Fagundes Telles
Pele impossível
que aprisiona hálitos,
criando provisórios claros.
Coesão flutuante e fluida,
Refletindo mil espaços.
Lagartos, gatos, ratos.
Uma mulher escrevendo
no olho verde e dourado
da estrutura improvável.
RODRIGUES, Marcus Vinícius. Pequeno inventário das ausências. Salvador: Fundação casa Jorge
Amado, 2001
sábado, 9 de março de 2013
EUCARISTIA
Dissolve-se na
minha boca
o gosto.
Percorro contrito
o corpo.
Lambo, arranho, mordo
ombros,
peitos,
dorso.
E escorre-se você
em fluidos de gozo.
Corpo do meu corpo,
sangue do meu sangue.
Límpido,
lívido,
vívido,
líquido
santo.
sexta-feira, 8 de março de 2013
Zona de perigo
Há os que anseiam
e os que interpretam
os sensuais signos.
Há os que estão na zona de perigo.
Há os que esperam
e os que passeiam
seus latentes cios.
Há os que estão na zona de perigo.
terça-feira, 5 de fevereiro de 2013
COZINHA ÍNTIMA por Alex Simôes
Para Marcus Vinícius Rodrigues
tem um poema aqui dentro
que esqueci de lhe mostrar
espere só um momento
que vou lá dentro buscar
ele está em andamento
faz favor de não contar
pra ninguém do fazimento
pro bolo não desandar
peraí, que eu volto já
enquanto isso, o rebento,
todo acontecimento
vem quando tem de chegar
meu poema tem fermento
e a lua, pó de solar
Publicado em http://toobitornottoobit.blogspot.com.br/2012/09/cozinha-intima.html
Não deixem de visitar o blog Too bit or not too bit de Alex Simões. Você vai pirar na poesia deste rapaz, deste meu amigo, deste poeta único.
domingo, 20 de janeiro de 2013
Do meu amor seus olhos
Direi do meu amor seus olhos
porque os vi primeiro quase que outros
em algo como um espelho, algo metálico.
Eles me olhavam fantasmas quase que mágicos,
eram dois e dourados na superfície prata,
fixos em mim, presos, como se guardas.
Eu o amei sem o ver inteiro: o meu amor,
naquele instante de fantasmagoria.
Direi do meu amor o que não era
sem jamais saber o que seria.
quinta-feira, 17 de janeiro de 2013
INFINITO
INFINITO
Um poema por (e não para) Alex Simões
O meu quarto se abre em sacada
para um mar de janelas anônimas,
abertas, fechadas,
com luz ou sombra.
Cegas,
não me veem no meu quarto com sacada.
Ávidas de nudez,
minha nudez,
apenas me adivinham,
e eu, do meu vinho
e eu, do meu vinho
já tomado,
estou também ávido, mas de mudez,
porque há muitas noites que te falo
de um infinito que não vês.
VERÃO NO AQUÁRIO
Era um aquário de fora o prédio
e suas janelas que não se abrem.
A natureza sufocava exposta
ao calor de si própria tarde.
Eu aqui respirava o gelo dos homens
liberto de todas as árvores.
Poema produzido para um exercício da oficina "Palavra a partir" de Angélica Freitas. É preciso dizer, porém, que eu não fiz o exercício direito
terça-feira, 8 de janeiro de 2013
Brutalmente Bruna
Brutalmente Bruna
Eu não
sabia o que fazer e abri a blusa
mais
tarde eu ia dizer foi sem pensar
ele me
achou desnorteada, confusa
como
acharia qualquer mulher que abre a blusa
e faz
tudo que fiz só pra agradar.
Bruna
Lombardi
Flash!
Qual a pose que ficou? Eu de olhos lânguidos pra ele? Eu de taça de
champagne na mão? Podia ser whisky? Essa dor de cabeça é whisky, tenho certeza.
Mas quando foi que eu desci do champagne protocolar para o porre? Quem mandou
beber em público, sua alcoólatra, no meio de um monte de jornalistas? E olha
que eles foram convidados. Nós não somos nada sem a imprensa, querida. Até
vocês decidirem nos destruir, eu devia ter completado. Amanhã vai sair a pior
foto no jornal. Nada da minha arte, só a fofoca. Você está namorando alguém? Eu
ainda estou casada, querida. Ele está filmando no Xingu, um filme
ma-ra-vi-lho-so, co-produção com a França, querida.
Flash!
Eu não vou te contar, querida, que
acordei com seu flash nos meus olhos, quase cega, querida. Você não vai saber
que eu não dormi em casa. Tá !
Eu ainda não sei bem onde estou e nem quem é esse cara deitado na cama. Você ia
gostar de me ver agora, de quatro, debaixo da cama, à caça de uma calcinha. Eu
estava com uma, tenho certeza. A manchete podia ser assim: uma noite vadia com
Bruna Bianchi. Muito literário pra você, não é? Você ia preferir algo mais
direto nas bancas de revista: flagra! Bruna Bianchi pula a cerca. A foto de meu
traseiro nu, mal coberto por esta camisa de homem. Não, querida. Esse gostinho
eu não lhe dou. Pode falar mal de meus quadros, pode dizer que sou péssima
atriz. Você não é crítica de arte mesmo. E novelas? Aquilo não é arte, é
corrida de obstáculos. Como você explica sua arte? Você perguntou. Como você
explica sua ignorância, meu bem? Eu não virei artista plástica do nada,
benzinho. Você não sabe que eu fazia Belas Artes, quando aquele fotógrafo me
descobriu? O dinheiro era tão bom,
entrei no mundo da moda. As novelas? Uma coisa leva à outra. Não! Isso não é
meu eu interior. Minha arte pretende outra coisa. Nem pense que você vai
fotografar minha alma. Contente-se com meu corpo. E não, eu não estou fazendo
isso para aparecer. Se eu quisesse aparecer, seria melhor ter um câncer. Tão na
moda, hoje em dia. O
sucesso seria garantido. Atriz vence luta contra a doença. Eu, belíssima e
orgulhosa com minha cabeça raspada, uma Nefertite vitoriosa. Tenho certeza que
você ia escrever algo assim: o sofrimento deixou Bruna Bianchi mais próxima de
sua personagem. Ela consegue viver a dor da heroína. Que dor? Pura técnica.
Cristal chinês. As lágrimas falsas.
Flash!
Os quadros? Eu só pinto o que vejo.
Por isso os cães de bocas ávidas, de olhos arregalados, brilhantes como o sol;
os homens abobalhados, os mesmos olhos acesos. E os quadros só com olhos,
dezenas de olhos, objetivas de câmeras, binóculos, isso não lhe lembra nada?
Você ainda não se identificou, meu amor? Não entendeu nada, hein? Bote lá na
sua manchete: Atriz impressiona em sua primeira exposição. Não foi isso que a
TV mandou dizer? Enquanto eu estiver no ar, tenho imunidade diplomática. A TV
não vai deixar nada me acontecer. Todos nós sabemos quanto vale o meu rosto. E
a novela está nos seus momentos decisivos, audiência absoluta. Eu tão
comportada. Já faz um tempo que não dou escândalo. Estou limpa, querida. Sem
calcinha, na casa de um estranho, é verdade, mas você não tem provas. Vai sair
uma foto dele me abraçando? O nome, a profissão. Modelo? Olhando daqui, pode
ser. Tem estampa. Minha avó diria que ele tem apresentação, moço bonito. E tem
tamanho, Vó. É magro. Deve ser mesmo modelo. Amanhã vai estar famoso. Eu sei,
Vó, eu deveria me preservar mais. Vou tentar da próxima vez. Agora só me
preocupa a calcinha que não acho. Isso eu aprendi, Vovó. Uma mulher não deve
deixar vestígios. São nossas intimidades, minha neta. Mas como, Vozinha? Eu sou
uma fábrica de pistas. Meu cabelo cai por onde passo. E essa tintura é única.
Outro dia achei um fio na calcinha. Imagina quantos homens que apenas me
cumprimentaram foram flagrados com cabelos meus na cueca. Esses fios são assim.
Entram em tudo. Também
sempre se solta um vidrilho do vestido. O batom, então? E os cheiros. Não dá
pra recolher tudo isso. Pelo menos a calcinha! Eu sei,Vovó, eu sei. E se ele
pegou de souvenir? Afinal, é uma calcinha de Bruna Bianchi. Um troféu! Ele tem
de mostrar pro amigos. Não, não parece que seja isso. Eu devo ter perdido. A
cueca dele está aqui, o nome da grife no cós. Ei, dela eu lembro saindo da
calça, toda branquinha, embaixo da camisa transparente, a barriga absurdamente
malhada, a virilha quase à mostra. Imprensa amada, Vovó querida, Bruna Bianchi
é uma vadia. Está explicada a perdição em que me meti. Aquela saliência que
começa na cintura e vai até lá embaixo, os pêlos começando discretamente, foi
por ali, foi por ali ... Veio tudo como um flash. Eu gostaria de me justificar,
sabe? Foi uma tentação audiovisual, como nos melhores métodos de aprender
línguas. Tinha aquele corpo atrás da transparência e uma voz dizendo algo como
puxa, é como se você colocasse um espelho na frente das pessoas que lhe
rodeiam, os fãs, os jornalistas. Este é o mundo que você vê. Viu, Ricardo, eu
lhe traí com alguém que entende minha arte, ao contrário de você. Tá, isso que
ele disse tava no release que mandei pra imprensa, mas eu estava bêbada.
E você? Você não pareceu capaz de tirar uma folga deste filme idiota para ser o
par de sua esposa. Já está há três meses neste fim de mundo. Ciúmes das índias,
eu?. Elas não me preocupam com seus peitos caídos, suas barrigas inchadas. Acho
que nem se interessam por um branquelo como você. O que me preocupa são essas
atrizinhas de quinta, fazendo papel de índias, os seios duros de silicone, lhe
chamando para um mergulho no rio. Não me volte com doenças, Ricardo. Se voltar,
que seja malária. Vou me deliciar com as febres de fim de tarde. Ah! Meu amor,
o que você me faz fazer? Lembra quando nos conhecemos, eu já estava muito
bêbada. Você disse alguma coisa que não entendi, mas terminou me chamando de
docinho. Eu não sabia o que responder, nem sabia a pergunta, mas aquele docinho
sussurrado no ouvido .. eu não sabia o que fazer e abri a blusa. Você deve ter
me achado uma louca. Depois eu ia dizer: foi sem pensar. Ia dizer que foi você
quem me tirou a razão. Não foi nada
disso. Eu apenas não sabia o que fazer. E uma mulher, assim perdida, assim
sozinha numa noite mais triste que as outras, essa mulher, só porque não
entendeu uma pergunta, é capaz de abrir a blusa, mostrar-se desafiadora. Foi só
isso, Ricardo. Toda minha vida em suas mãos só porque você disse docinho no
final de uma pergunta. Não sei se você queria ir ao banheiro ou se queria me
pedir um beijo. Eu apenas abri a blusa e você ficou maravilhado com minha
ousadia. Um botão pode decidir nossas vidas.
E agora, aqui estou eu neste chão de
um apartamento estranho. Veja, vozinha, amigos jornalistas, registrem este
momento. Podem fotografar. Eu não estou lá na melhor forma. Este camisão não me
valoriza, estou com a maquiagem borrada, mas gostaria de aproveitar a
oportunidade para falar de meu próximo projeto de teatro, um recital: Brutalmente
Bruna. Eu completamente sem glamour, assim como estou agora. Sempre
funciona. Se a ex-modelo se enfeia para o papel, já sobe de patamar, vira
atriz. É o pedágio. Vou virar atriz, querida, e você vai ter de deixar suas
ironias de lado nessa sua colunazinha de fofocas. Agora só vou aceitar críticas
da Bárbara Heliodora, fofa. E eu também vou fazer o cenário e a luz. Veja essa
fresta de sol sobre meus seios. Se eu me inclino pra frente, a luz ilumina meu
rosto. Já dá uma chamadinha na TV, não é Ricardo. Sei, Vó. Pernas fechadas.
Tenho de lembrar sempre de fechar as pernas na televisão. Mas eu vou usar
calças. Uma mulher sempre está de pernas fechadas, minha neta, esteja usando o
que for. Mesmo sem calcinhas, bêbada, usando só uma camisa de homem? Eu devia
levantar e ir ao banheiro recompor este rosto. O que fazer sem maquiagem na bolsa? Só um batom. Água e sabão. E se o
batom é rosa, pode ser o blush e a
sombra. Uma mulher nunca deve estar inteiramente de cara limpa, principalmente
nos momentos mais dramáticos. Esse prédio deve ter porteiro que certamente me
conhece. Os porteiros conhecem todo mundo que é famoso. As revistas têm sempre de passar por eles. E quando você
está na novela ... Tenho de descer com toda a pose, roubar estes óculos do rapaz,
esse dinheiro para o táxi. Melhor deixar um bilhete dizendo que peguei
emprestado e vou devolver. Não. Nada de vestígios, não é Vó? Ele que pense o
que quiser. Depois mando um pacote anônimo devolvendo tudo. Desfaz-se a
impressão e ele vai ter certeza de que não é pra me procurar. Vou levar este
casaco pra disfarçar o brilho do vestido. Estou uma gatuna. Se eu fosse uma
princesa européia, ia ter um batalhão de assessores pra esconder meus deslizes.
Um telefonema e o serviço secreto invadiria o apartamento, depois de minha
discreta saída, e sumiria com todos os vestígios. Se o rapaz não colaborasse,
jamais trabalharia neste país. Um caso de segurança nacional. Mas eu só tenho
minha Vozinha pra zelar por mim e um marido ausente. Ricardo não está nem aí. Ele
ia adorar me pegar no pulo. É muito difícil para uma mulher não ser uma
princesa. A calcinha? Vejamos uma resposta. Voz natural, enfado: Nossa, ela
marcava muito através do vestido. Tirei e joguei no banheiro da galeria. Lembra
que Carmem Miranda fez isso uma vez? Eu não podia imaginar que existissem
pessoas tão doentes como esse rapaz. Roubar a calcinha de uma atriz como eu.
Certamente um fã, mas um fã muito doente. E eles leiloam de tudo nessa
internet. Como as pessoas são solitárias hoje em dia. Esse rapaz
certamente só que chamar atenção. Dada minha última entrevista, passo os olhos
no apartamento. Simpático até. Desço pela escada os dezoito andares. Elevadores
são perigosíssimos. Muita intimidade. É quase promíscuo. Lá pelo nono ouço uma
ópera. Alguém ouve ópera de manhã cedo. Ainda bem que não moro aqui. Ópera? Eu
quero a Gal aos berros, você me entende. A Gal rasgando a garganta. Saio sem
olhar o porteiro na cara e caminho para uma rua transversal. Bairro agradável,
nem estou longe do meu. Desvio do jornaleiro que abre sua banca, a rua deserta.
Meus saltos são o único barulho nas pedras portuguesas. Não é tão fácil como
estar numa passarela, mas coloco um pé em frente ao outro, ombros para trás,
mãos nos bolsos do paletó, fixo o olhar num fotógrafo imaginário no horizonte e
vou.
Flash!
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