QUINTA-FEIRA
Do livro CADA DIA SOBRE A TERRA,
de Marcus Vinícius Rodrigues
Ele desceu
como uma flecha as escada que ligavam a Ladeira de Nanã à Rua do Dique Pequeno.
Pulou os buracos sem degrau e quase caiu quando pisou num deles que estava
solto, mal colocado. Era uma escada ainda aquela, mas há muito abandonada, coberta
de mato, degraus faltando, degraus soltos. Mas ainda assim era o caminho mais
rápido entre o Parque Boa Vista de Brotas e o Dique do Tororó. Jorge não descia
por ali há muito tempo. Tudo que fazia era lá em cima, no Engenho Velho. Nunca
ia ao Dique. Pra quê? Nada ali lhe interessava. Via de longe as águas, os
orixás em torno da fonte, a noite toda iluminada, as pessoas correndo em volta,
os carros lentos nos engarrafamentos, tanta coisa girando em torno daquelas
águas. A fila de ônibus seguia para a Estação da Lapa, numa romaria de
gigantes. Pareciam os dinossauros daquele filme, todos enfileirados e burros,
como gado a caminho do matadouro. Iam se enfiar nos buracos da estação e
despachar do estômago as vísceras, os passageiros e suas vidas corridas e
ocupadas.
Via de longe apenas, da janela de seu quarto,
todos os dias, da manhã até a noite, toda a noite, às vezes, quando ficava
acordado, sem sono, sem um amanhã esperando, sem hora de levantar e sair para o
trabalho. Apenas observava lá de cima o Dique e tudo que em torno dele girava,
vivo e veloz, lento e constante. Era como se toda a cidade passasse por ali.
Ele, em sua janela, olhava e sentia que não fazia parte daquilo tudo. Nada lhe
dizia respeito.
Sem trabalho,
sem conseguir nada, restava ficar em casa o dia todo. Depois que a mulher e os
filhos saíam, ia para a janela. Podia descer, caminhar pela rua, ir ao Dique lá
embaixo, mas para nada tinha vontade. No princípio, saía ainda de casa para as
tarefas de desempregado, as filas de seguro desemprego, as filas de seleção, as
entrevistas, essas eram suas saídas quase diárias. Depois, tinha o tempo ao
lado do telefone, a espera. Nenhuma resposta. Aos poucos foram rareando essas
saídas. Passou a enganar a mulher dizendo que ia sair e, quando todos deixavam
a casa, ia até a janela e se deixava ficar. Sem nada a fazer, apenas
contemplava. Via o céu mudar ao longo do dia, via as sombras das árvores do
lado de cá se recolherem à medida que o sol ia alto. Depois, via as sombras das
árvores do lado de lá se esticarem sobre as águas acompanhando a tarde caindo.
Passava assim seus dias.
A mulher, no
princípio, brigava, chamava-o de inútil, incapaz. Mas, com o tempo, desistiu.
Aos poucos ela foi abandonando o marido, ocupada que estava com sua própria
vida que seguia. Tinha um emprego e dois filhos para ajudar a sustentar. Eles
trabalhavam, é verdade, mas ainda dividiam o tempo com estudos. O mais velho vendia roupas na mesma loja em
que a mãe trabalhava, num shopping popular no centro da cidade. O mais novo, ainda
no primeiro emprego, era garçom, logo ali, no Dique, numa pizzaria à beira
d’água. Este era o filho mais próximo do pai, o caçula, o júnior de seu nome, e
que ainda se preocupava com sua demora para conseguir novo emprego, sua demora
para acordar ela manhã, sua demora para dormir. Sempre que voltava da pizzaria,
ainda o encontrava à janela.
— Ainda aí,
pai?
— Esperando
você, filho.
Ela sabia que
não era verdade. Não era o filho que o pai esperava. De verdade, não acreditava
que o pai esperasse alguma coisa ainda, tão desinteressado que estava das
coisas, dos filhos, de sua mãe.
— Um colega me
falou de uma empresa que está pegando gente, pai. A garagem é na Barros Reis.
Quer que eu vá lá com o senhor?
— Pra quê?
Eles não pegam mais cobrador com experiência. Se já trabalhou em outra empresa,
eles não gostam. Acham que o cara já está viciado no que é errado.
— Não custa
tentar.
— Cobrador
esperto não bota todo o dinheiro no cofre. Morrer na mão de bandido pra quê?
Tem que ser muito idiota ou novo o ramo. É preciso deixar alguma coisa para o
ladrão.
— E aquele
curso de motorista?
— To vendo aí
uma vaga.
Não estava, o
filho sabia. Já tinha tentado antes, quando estava empregado. Todo cobrador
queria ser motorista, ele também. Começou a manobrar os ônibus na garagem,
junto com o manobrista. Ia bem no aprendizado. Queria estar craque pro dia de
se inscrever no curso da empresa. Faria o curso e seria um dos melhores. Daí
era só tirar a carteira e, na certa, seria promovido. Sua vida estava assim
programada. Mas, então, num dia em que
treinava à noite, depois do trabalho, a garagem quase cheia de ônibus,
estacionava um deles num último espaço na fileira, ali bem perto da bomba de
gasolina. Manobrou errado, abriu demais a curva e atingiu a bomba, de leve. Ela
quase se soltou, ela quase vazou. Quase foi um acidente enorme. Todo o
combustível podia ter vazado, tudo podia ter explodido. Nada aconteceu. Apenas
Jorge perdeu o emprego, por um triz, por um centímetro, por uma meia volta que
não fez no volante. Por quase nada.
E tudo que
sabia era trabalhar como cobrador, os dedos ágeis para contar dinheiro. Queria
levar essa agilidade para o gesto largo dos braços, mas errou o tamanho da
volta. Era tão antigo na empresa, mas não tinha como explicar estar ali no
lugar errado, na hora errada. Tinha apenas de sair e não voltar. Foi assim que,
depois de tantos anos, voltou pra casa e ficou. Até o dia em que se debruçou na
janela para ver o sol de pôr atrás do bairro do Tororó lá do outro lado do
Dique. Viu aquela luz se esvaindo escorrendo para o mar que tinha lá do outro
lado, deixando atrás de si um escuro salpicado de luzes miúdas nas casas.
Dormiu aquela noite um pouco mais tarde, vendo as pequenas luzes se apagarem
aos poucos, as casas lá do outro lado se fechando para esperar a manhã.
Nessa época, sua
mulher ainda se incomodava de ele não ir dormir junto com ela, mas uma noite,
mais cansada que das outras vezes, dormiu sem chamá-lo. Ele passou a noite na
janela, viu o filho mais novo chegar do trabalho, viu mesmo ele sair da
pizzaria lá embaixo e atravessar a rua a caminho de casa. Nesse dia só foi para
a cama com o dia quase raiando. Quando a mulher saiu de casa para trabalhar,
ele ainda dormia.
Foi assim que
seus horários se separaram do resto da casa. Apenas com o mais novo tinha um
momento de conversa no fim da noite.
— Eu tenho um
freguês que trabalha nessa empresa que falei. Ele disse que consegue alguma
coisa pro senhor. Basta ir lá.
— Que coisa,
filho? Sei trabalhar com mais o quê?
— Ele consegue
uma vaga de despachante. É mais que cobrador, mais que motorista.
— E por que
ele vai me dar uma vaga tão boa.
O filho
hesitou em falar.
— Ah! Ele me
deve essa. Um favor que fiz pra ele, mas ele disse que o senhor se encaixa na
vaga. Contei como o senhor era e ele
gostou.
— Assim. Só de
você contar?
O filho olhava
agora pela janela e para o Dique lá embaixo. Concentrava o olhar nas árvores em
volta, procurava ali alguma coisa que estava escondida. Queria uma resposta que
escondesse a que não podia dar. Uma boa história, com alguma verdade ainda,
capaz de saciar o pai e sua desconfiança em tanta sorte.
— Começou
quando ele perguntou por que eu era Júnior, de que nome. Quando eu disse que me
chamava Jorge e que o senhor se chamava Jorge, ele gostou. Quis saber se o
senhor era feito.
— E o que você
disse?
— Eu não
menti.
— Ah!
— E ele gostou
assim mesmo. Disse que era um Jorge que podia resolver a vida dele. Num Jorge
ele podia confiar.
O menino
falava aliviado, tinha resvalado na mentira, mas já estava de novo nas fileiras
dos sinceros. Não importavam muito os detalhes da conversa que tivera e que
ajudariam o pai a entender o que estava dizendo. Importava que o pai entendia a
parte que interessava. Ele era querido naquele trabalho. Era necessário. Alguém
já confiava nele.
— Vamos lá depois
de amanhã?
— Sexta? E
alguém começa a trabalhar numa sexta-feira?
— Pra ele lhe
conhecer. Dando tudo certo, o senhor começa segunda.
Jorge demorou
a dormir como todas, mas acordou cedo. Ainda ouviu os barulhos matinais da
casa, a mulher e o filho mais velho se arrumando para o trabalho. ficou na cama
fingindo dormir até eu a casa estivesse silenciada. O filho mais novo também
tinha saído para a escola. Antes, porém, sentiu sua presença no quarto,
observando o pai que dormia. Estava esperançoso, era visível na forma como
andava pela casa. O pai queria retribuir tanta esperança, tanta confiança
ainda. Assim que ficou sozinho, levantou-se. Tomou café como todos os dias, em
pé, no corredor em frente à cozinha, de onde podia ver a janela do quarto. Naquela
hora não costumava ficar na janela. Apenas a partir das dez horas da manhã é
que começava sua vigília diária.
Mas aquele era
outro dia. Em vez de se debruçar na janela, resolveu tomar banho e sair. Estava
um dia quente, sem nuvens no céu. O bairro tinha muito trânsito naquela hora. Quando
alcançou a rua principal, que contornava o Parque Boa Vista, os ônibus passavam
em velocidade, quase tocando as casas que ficavam muito próximas da rua. Caminhou pelo canto, sem calçada, até entrar
no Engenho Velho. Sabia que lá dentro, quase no fim-de-linha, tinha um babeiro
barato. Nunca tinha ido, já fazia um tempo que cortava o cabelo de qualquer
jeito em casa com a máquina de raspar do filho. Cortava baixo, mas sem raspar,
e sem acabamento. Hoje, queria diferente. Um corte normal, como se fazia
antigamente, bem batido nos lados e atrás, bem curto, mas ainda com cabelo.
Queria mostrar os brancos que já tinha e mostrar que eram poucos, homem forte
ainda. Homem respeitável, mas forte. Foi
esse o corte que pediu ao barbeiro. Apenas quando sentou na cadeira para cortar
os cabelos é que viu, pelo espelho, lá atrás numa prateleira, a figura de São
Jorge. Ele estava sobre seu cavalo momentos antes do golpe fatal de sua lança.
O dragão, sob as patas do cavalo, aguardava o golpe. Eles estavam paralisados
naquele momento, um segundo antes do fim, a morte e a glória, a redenção enfim.
Dali a pouco o mal seria destruído e se esvaneceria para sempre da face da
terra.
— Da lua.
Era assim que
o filho lhe corrigia toda vez que contava essa história. Era pequenino ainda e
depois que ouviu a primeira vez, percebeu a incoerência. Se São Jorge vivia na
lua, ele e o dragão, só podia acabar com o mal de lá. Aqui na terra ficava tudo
a mesma coisa. E quando o pai mostrava a lua e dizia que aquelas manchas era o
santo perseguindo o dragão, o filho dizia: mas ele não já matou esse bicho?
Um dia, o
filho pediu de presente uma estátua de São Jorge. Foi difícil explicar que não
podia dar a imagem, que a mãe dele não gostava dessas coisas. Idolatria, ela
dizia, quando o filho tocava no assunto.
— Mas meu pai
é devoto de São Jorge.
— Não é não.
Já se libertou dessa enganação de demônios.
A mãe sempre
falava de demônios. Acreditava muito neles. O menino acostumou-se a não falar
mais no assunto. O pai acostumou-se a nem mesmo lembrar como fora sua infância
e sua juventude, como um guerreiro, um caçador em meio a uma floresta de
aventuras. Acostumou-se ao emprego simples, acostumou-se ao desemprego,
acostumou-se a apenas ver o mundo girar em torno das éguas do Dique, em seu
sentido anti-horário, como se estivesse sempre voltando no tempo, um segundo
para frente, dois para trás, todos os dias parados e iguais, sem nada para
acontecer.
— Pronto.
O babeiro
anunciou o fim do corte, trouxe um espelho que pôs atrás de Jorge. A nuca
estava batida, bem rente ao couro cabeludo. Depois, o cabelo ia subindo e
formando no alto da cabeça um topete duro, ainda muito curto. A cabeça inteira
estava uniforme, sem que os crespos do cabelo se enrodilhassem. Jorge gostava assim,
um corte rente, antes que o cabelo desse a primeira volta, uma espiral antes de
começar. Assim ele podia ser qualquer coisa e ninguém podia saber ainda o que
era. Era o mesmo truque dos filhos, que raspavam tudo, só que com mais perigo,
pois o corte vinha no último instante. Em uma semana tudo se desfazia.
Jorge contou
os dinheiros do bolso, pagou e saiu. Estava cada vez mais confiante naquela
nova vida que viria. Caminhou de volta para casa com o olhar mais alto, fixo em frente. Assim ,
reparou que reparavam nele, a moça do armarinho, que escondeu um sorriso com as
mãos, a velhinha que lhe cumprimentou, o carregador de cervejas que lhe deu
passagem, mesmo segurando tanto peso. Caminhou um caminho reto e decidido, sem
se desviar, sem ser desviado por ninguém, apenas seguia um caminho traçado.
Chegaria lá, pensava. A cada passo, sentia-se menos só, como se lhe
acompanhasse aquele São Jorge da barbearia. Não tinha um espelho agora. Se
tivesse, surpreenderia o santo lhe servindo de escolta. Podia apenas sentir o
trotar do cavalo e, à frente, depois de passar por sobre o seu ombro direito,
lá adiante, a ponta da lança que lhe abria os caminhos, certeira, exata. Chegou
mesmo a perceber um jovem se desviar da lança. Ele saía de uma loja e, ao
virar, pareceu ver a lança e desviou de lado. Jorge passou sem olhá-lo, mas
pelo canto dos olhos pensou vê-lo fazer um gesto de saudação e murmurar um
canto.
Foi assim que
chegou em casa, foi assim que passou todo o dia: encantado. Tinha sempre a seu
lado o cavaleiro da lua e seu cavalo, mesmo no pequeno quarto de dormir. Não
ligou para os comentários da mulher sobre seu cabelo. Ela logo o deixou em paz,
já acostumada com o silêncio do marido. Sabia que ele e sua janela viviam num
mundo distante do seu. Ele voltava os olhos para fora, para o horizonte, e nada
que acontecesse na casa lhe incomodava. Foi assim naquela como nas outras
noites, mas desta vez ele não se sentia só, senti-se forte e confiante. No dia
seguinte, cedo, acordaria e, com o filho, seu Júnior, iria ao novo emprego.
Bastava esperar mais essa noite passar, apenas mais uma, apenas mais uma.
Mas o tempo
não passa assim em saltos, como quem pisca o olho e acorda no outro dia. As
horas se arrastam pouco a pouco, e é preciso ver tudo que acontece nos momentos
inúteis da espera. Jorge olhava o Dique e seus giros em volta diminuindo. Já
não havia mais o congestionamento de carros, os ônibus já rareavam, a noite já
ia alta e começava a descer para o dia. Ele esperava. Foi então que viu.
Se ele
contasse a alguém o que viu, diriam que era mentira, que àquela distância não
poderia ver nada, ainda mais à noite. Sandices de um velho. Mas ele viu
Saindo da
pizzaria, já apagada, viu o filho. Era um vulto indecifrável na noite, mas era
seu filho. Podia ver o andar que conhecia há tanto tempo, desde os primeiros
passos. Podia ver os gestos das mãos, as mesmas mãos que se estendiam para
pedir o colo do pai, quando o pai era toda a fortaleza que conhecia. Ele
gesticulava conversando com um rapaz. Eram gestos fortes, decididos. O outro
rapaz apenas ouvia, sem nada dizer. Então, começou a falar e seus gestos eram
mais fortes e pareciam brigar com Júnior. Parecia que brigavam. Jorge, então,
viu o filho mudar. Ele explicava alguma coisa, pedia, depois brigava. O outro
respondia mais violento. Quem era aquele homem? Jorge não conhecia. Não era
ninguém da pizzaria. Conhecia todos lá e tinha certeza que reconheceria todos.
Era um desconhecido. A discussão continuava cada vez mais violenta até que o
filho empurrou o rapaz, que caiu no chão. Jorge estava tenso e orgulhoso. O que
viria agora? Foi então que algo brilhou no rapaz. Jorge não viu o que era, mas
viu o filho dar um passo pra trás.
Jorge
afastou-se da janela num salto. A mulher dormia na cama. Queria voltar e ver o
que acontecia, agarrar-se a sua janela de onde via tudo acontecer lá embaixo, a
distância lhe dando toda a segurança de que precisava. Bastava voltar e pronto.
Mesmo que visse o filho ser morto, ainda assim, estaria em sua janela de onde
observava o mundo. Ali. Seguro.
Bastava voltar
e olhar.
Jorge saiu
correndo pela casa até a porta da rua, saiu porta afora num galope violento.
Não sabia o que fazia ou pensava, apenas corria como uma flecha. Uma flecha
certeira e caçadora que uma vez lançada só para no alvo fatal.