segunda-feira, 23 de abril de 2012

Conto QUINTA-FEIRA


QUINTA-FEIRA
Do livro CADA DIA SOBRE A TERRA,
de Marcus Vinícius Rodrigues

Ele desceu como uma flecha as escada que ligavam a Ladeira de Nanã à Rua do Dique Pequeno. Pulou os buracos sem degrau e quase caiu quando pisou num deles que estava solto, mal colocado. Era uma escada ainda aquela, mas há muito abandonada, coberta de mato, degraus faltando, degraus soltos. Mas ainda assim era o caminho mais rápido entre o Parque Boa Vista de Brotas e o Dique do Tororó. Jorge não descia por ali há muito tempo. Tudo que fazia era lá em cima, no Engenho Velho. Nunca ia ao Dique. Pra quê? Nada ali lhe interessava. Via de longe as águas, os orixás em torno da fonte, a noite toda iluminada, as pessoas correndo em volta, os carros lentos nos engarrafamentos, tanta coisa girando em torno daquelas águas. A fila de ônibus seguia para a Estação da Lapa, numa romaria de gigantes. Pareciam os dinossauros daquele filme, todos enfileirados e burros, como gado a caminho do matadouro. Iam se enfiar nos buracos da estação e despachar do estômago as vísceras, os passageiros e suas vidas corridas e ocupadas.
 Via de longe apenas, da janela de seu quarto, todos os dias, da manhã até a noite, toda a noite, às vezes, quando ficava acordado, sem sono, sem um amanhã esperando, sem hora de levantar e sair para o trabalho. Apenas observava lá de cima o Dique e tudo que em torno dele girava, vivo e veloz, lento e constante. Era como se toda a cidade passasse por ali. Ele, em sua janela, olhava e sentia que não fazia parte daquilo tudo. Nada lhe dizia respeito.
Sem trabalho, sem conseguir nada, restava ficar em casa o dia todo. Depois que a mulher e os filhos saíam, ia para a janela. Podia descer, caminhar pela rua, ir ao Dique lá embaixo, mas para nada tinha vontade. No princípio, saía ainda de casa para as tarefas de desempregado, as filas de seguro desemprego, as filas de seleção, as entrevistas, essas eram suas saídas quase diárias. Depois, tinha o tempo ao lado do telefone, a espera. Nenhuma resposta. Aos poucos foram rareando essas saídas. Passou a enganar a mulher dizendo que ia sair e, quando todos deixavam a casa, ia até a janela e se deixava ficar. Sem nada a fazer, apenas contemplava. Via o céu mudar ao longo do dia, via as sombras das árvores do lado de cá se recolherem à medida que o sol ia alto. Depois, via as sombras das árvores do lado de lá se esticarem sobre as águas acompanhando a tarde caindo. Passava assim seus dias.
A mulher, no princípio, brigava, chamava-o de inútil, incapaz. Mas, com o tempo, desistiu. Aos poucos ela foi abandonando o marido, ocupada que estava com sua própria vida que seguia. Tinha um emprego e dois filhos para ajudar a sustentar. Eles trabalhavam, é verdade, mas ainda dividiam o tempo com estudos.  O mais velho vendia roupas na mesma loja em que a mãe trabalhava, num shopping popular no centro da cidade. O mais novo, ainda no primeiro emprego, era garçom, logo ali, no Dique, numa pizzaria à beira d’água. Este era o filho mais próximo do pai, o caçula, o júnior de seu nome, e que ainda se preocupava com sua demora para conseguir novo emprego, sua demora para acordar ela manhã, sua demora para dormir. Sempre que voltava da pizzaria, ainda o encontrava à janela.
— Ainda aí, pai?
— Esperando você, filho.
Ela sabia que não era verdade. Não era o filho que o pai esperava. De verdade, não acreditava que o pai esperasse alguma coisa ainda, tão desinteressado que estava das coisas, dos filhos, de sua mãe.
— Um colega me falou de uma empresa que está pegando gente, pai. A garagem é na Barros Reis. Quer que eu vá lá com o senhor?
— Pra quê? Eles não pegam mais cobrador com experiência. Se já trabalhou em outra empresa, eles não gostam. Acham que o cara já está viciado no que é errado.
— Não custa tentar.
— Cobrador esperto não bota todo o dinheiro no cofre. Morrer na mão de bandido pra quê? Tem que ser muito idiota ou novo o ramo. É preciso deixar alguma coisa para o ladrão.
— E aquele curso de motorista?
— To vendo aí uma vaga.
Não estava, o filho sabia. Já tinha tentado antes, quando estava empregado. Todo cobrador queria ser motorista, ele também. Começou a manobrar os ônibus na garagem, junto com o manobrista. Ia bem no aprendizado. Queria estar craque pro dia de se inscrever no curso da empresa. Faria o curso e seria um dos melhores. Daí era só tirar a carteira e, na certa, seria promovido. Sua vida estava assim programada.  Mas, então, num dia em que treinava à noite, depois do trabalho, a garagem quase cheia de ônibus, estacionava um deles num último espaço na fileira, ali bem perto da bomba de gasolina. Manobrou errado, abriu demais a curva e atingiu a bomba, de leve. Ela quase se soltou, ela quase vazou. Quase foi um acidente enorme. Todo o combustível podia ter vazado, tudo podia ter explodido. Nada aconteceu. Apenas Jorge perdeu o emprego, por um triz, por um centímetro, por uma meia volta que não fez no volante. Por quase nada.
E tudo que sabia era trabalhar como cobrador, os dedos ágeis para contar dinheiro. Queria levar essa agilidade para o gesto largo dos braços, mas errou o tamanho da volta. Era tão antigo na empresa, mas não tinha como explicar estar ali no lugar errado, na hora errada. Tinha apenas de sair e não voltar. Foi assim que, depois de tantos anos, voltou pra casa e ficou. Até o dia em que se debruçou na janela para ver o sol de pôr atrás do bairro do Tororó lá do outro lado do Dique. Viu aquela luz se esvaindo escorrendo para o mar que tinha lá do outro lado, deixando atrás de si um escuro salpicado de luzes miúdas nas casas. Dormiu aquela noite um pouco mais tarde, vendo as pequenas luzes se apagarem aos poucos, as casas lá do outro lado se fechando para esperar a manhã.
Nessa época, sua mulher ainda se incomodava de ele não ir dormir junto com ela, mas uma noite, mais cansada que das outras vezes, dormiu sem chamá-lo. Ele passou a noite na janela, viu o filho mais novo chegar do trabalho, viu mesmo ele sair da pizzaria lá embaixo e atravessar a rua a caminho de casa. Nesse dia só foi para a cama com o dia quase raiando. Quando a mulher saiu de casa para trabalhar, ele ainda dormia.
Foi assim que seus horários se separaram do resto da casa. Apenas com o mais novo tinha um momento de conversa no fim da noite.
— Eu tenho um freguês que trabalha nessa empresa que falei. Ele disse que consegue alguma coisa pro senhor. Basta ir lá.
— Que coisa, filho? Sei trabalhar com mais o quê?
— Ele consegue uma vaga de despachante. É mais que cobrador, mais que motorista.
— E por que ele vai me dar uma vaga tão boa.
O filho hesitou em falar.
— Ah! Ele me deve essa. Um favor que fiz pra ele, mas ele disse que o senhor se encaixa na vaga. Contei como o senhor era e  ele gostou.
— Assim. Só de você contar?
O filho olhava agora pela janela e para o Dique lá embaixo. Concentrava o olhar nas árvores em volta, procurava ali alguma coisa que estava escondida. Queria uma resposta que escondesse a que não podia dar. Uma boa história, com alguma verdade ainda, capaz de saciar o pai e sua desconfiança em tanta sorte.
— Começou quando ele perguntou por que eu era Júnior, de que nome. Quando eu disse que me chamava Jorge e que o senhor se chamava Jorge, ele gostou. Quis saber se o senhor era feito.
— E o que você disse?
— Eu não menti.
— Ah!
— E ele gostou assim mesmo. Disse que era um Jorge que podia resolver a vida dele. Num Jorge ele podia confiar.
O menino falava aliviado, tinha resvalado na mentira, mas já estava de novo nas fileiras dos sinceros. Não importavam muito os detalhes da conversa que tivera e que ajudariam o pai a entender o que estava dizendo. Importava que o pai entendia a parte que interessava. Ele era querido naquele trabalho. Era necessário. Alguém já confiava nele.
— Vamos lá depois de amanhã?
— Sexta? E alguém começa a trabalhar numa sexta-feira?
— Pra ele lhe conhecer. Dando tudo certo, o senhor começa segunda.
Jorge demorou a dormir como todas, mas acordou cedo. Ainda ouviu os barulhos matinais da casa, a mulher e o filho mais velho se arrumando para o trabalho. ficou na cama fingindo dormir até eu a casa estivesse silenciada. O filho mais novo também tinha saído para a escola. Antes, porém, sentiu sua presença no quarto, observando o pai que dormia. Estava esperançoso, era visível na forma como andava pela casa. O pai queria retribuir tanta esperança, tanta confiança ainda. Assim que ficou sozinho, levantou-se. Tomou café como todos os dias, em pé, no corredor em frente à cozinha, de onde podia ver a janela do quarto. Naquela hora não costumava ficar na janela. Apenas a partir das dez horas da manhã é que começava sua vigília diária.
Mas aquele era outro dia. Em vez de se debruçar na janela, resolveu tomar banho e sair. Estava um dia quente, sem nuvens no céu. O bairro tinha muito trânsito naquela hora. Quando alcançou a rua principal, que contornava o Parque Boa Vista, os ônibus passavam em velocidade, quase tocando as casas que ficavam muito próximas da rua.  Caminhou pelo canto, sem calçada, até entrar no Engenho Velho. Sabia que lá dentro, quase no fim-de-linha, tinha um babeiro barato. Nunca tinha ido, já fazia um tempo que cortava o cabelo de qualquer jeito em casa com a máquina de raspar do filho. Cortava baixo, mas sem raspar, e sem acabamento. Hoje, queria diferente. Um corte normal, como se fazia antigamente, bem batido nos lados e atrás, bem curto, mas ainda com cabelo. Queria mostrar os brancos que já tinha e mostrar que eram poucos, homem forte ainda. Homem respeitável, mas forte.  Foi esse o corte que pediu ao barbeiro. Apenas quando sentou na cadeira para cortar os cabelos é que viu, pelo espelho, lá atrás numa prateleira, a figura de São Jorge. Ele estava sobre seu cavalo momentos antes do golpe fatal de sua lança. O dragão, sob as patas do cavalo, aguardava o golpe. Eles estavam paralisados naquele momento, um segundo antes do fim, a morte e a glória, a redenção enfim. Dali a pouco o mal seria destruído e se esvaneceria para sempre da face da terra.
— Da lua.
Era assim que o filho lhe corrigia toda vez que contava essa história. Era pequenino ainda e depois que ouviu a primeira vez, percebeu a incoerência. Se São Jorge vivia na lua, ele e o dragão, só podia acabar com o mal de lá. Aqui na terra ficava tudo a mesma coisa. E quando o pai mostrava a lua e dizia que aquelas manchas era o santo perseguindo o dragão, o filho dizia: mas ele não já matou esse bicho?
Um dia, o filho pediu de presente uma estátua de São Jorge. Foi difícil explicar que não podia dar a imagem, que a mãe dele não gostava dessas coisas. Idolatria, ela dizia, quando o filho tocava no assunto.
— Mas meu pai é devoto de São Jorge.
— Não é não. Já se libertou dessa enganação de demônios.
A mãe sempre falava de demônios. Acreditava muito neles. O menino acostumou-se a não falar mais no assunto. O pai acostumou-se a nem mesmo lembrar como fora sua infância e sua juventude, como um guerreiro, um caçador em meio a uma floresta de aventuras. Acostumou-se ao emprego simples, acostumou-se ao desemprego, acostumou-se a apenas ver o mundo girar em torno das éguas do Dique, em seu sentido anti-horário, como se estivesse sempre voltando no tempo, um segundo para frente, dois para trás, todos os dias parados e iguais, sem nada para acontecer.
— Pronto.
O babeiro anunciou o fim do corte, trouxe um espelho que pôs atrás de Jorge. A nuca estava batida, bem rente ao couro cabeludo. Depois, o cabelo ia subindo e formando no alto da cabeça um topete duro, ainda muito curto. A cabeça inteira estava uniforme, sem que os crespos do cabelo se enrodilhassem. Jorge gostava assim, um corte rente, antes que o cabelo desse a primeira volta, uma espiral antes de começar. Assim ele podia ser qualquer coisa e ninguém podia saber ainda o que era. Era o mesmo truque dos filhos, que raspavam tudo, só que com mais perigo, pois o corte vinha no último instante. Em uma semana tudo se desfazia.
Jorge contou os dinheiros do bolso, pagou e saiu. Estava cada vez mais confiante naquela nova vida que viria. Caminhou de volta para casa com o olhar mais alto, fixo em frente. Assim, reparou que reparavam nele, a moça do armarinho, que escondeu um sorriso com as mãos, a velhinha que lhe cumprimentou, o carregador de cervejas que lhe deu passagem, mesmo segurando tanto peso. Caminhou um caminho reto e decidido, sem se desviar, sem ser desviado por ninguém, apenas seguia um caminho traçado. Chegaria lá, pensava. A cada passo, sentia-se menos só, como se lhe acompanhasse aquele São Jorge da barbearia. Não tinha um espelho agora. Se tivesse, surpreenderia o santo lhe servindo de escolta. Podia apenas sentir o trotar do cavalo e, à frente, depois de passar por sobre o seu ombro direito, lá adiante, a ponta da lança que lhe abria os caminhos, certeira, exata. Chegou mesmo a perceber um jovem se desviar da lança. Ele saía de uma loja e, ao virar, pareceu ver a lança e desviou de lado. Jorge passou sem olhá-lo, mas pelo canto dos olhos pensou vê-lo fazer um gesto de saudação e murmurar um canto.
Foi assim que chegou em casa, foi assim que passou todo o dia: encantado. Tinha sempre a seu lado o cavaleiro da lua e seu cavalo, mesmo no pequeno quarto de dormir. Não ligou para os comentários da mulher sobre seu cabelo. Ela logo o deixou em paz, já acostumada com o silêncio do marido. Sabia que ele e sua janela viviam num mundo distante do seu. Ele voltava os olhos para fora, para o horizonte, e nada que acontecesse na casa lhe incomodava. Foi assim naquela como nas outras noites, mas desta vez ele não se sentia só, senti-se forte e confiante. No dia seguinte, cedo, acordaria e, com o filho, seu Júnior, iria ao novo emprego. Bastava esperar mais essa noite passar, apenas mais uma, apenas mais uma.
Mas o tempo não passa assim em saltos, como quem pisca o olho e acorda no outro dia. As horas se arrastam pouco a pouco, e é preciso ver tudo que acontece nos momentos inúteis da espera. Jorge olhava o Dique e seus giros em volta diminuindo. Já não havia mais o congestionamento de carros, os ônibus já rareavam, a noite já ia alta e começava a descer para o dia. Ele esperava. Foi então que viu.
Se ele contasse a alguém o que viu, diriam que era mentira, que àquela distância não poderia ver nada, ainda mais à noite. Sandices de um velho. Mas ele viu
Saindo da pizzaria, já apagada, viu o filho. Era um vulto indecifrável na noite, mas era seu filho. Podia ver o andar que conhecia há tanto tempo, desde os primeiros passos. Podia ver os gestos das mãos, as mesmas mãos que se estendiam para pedir o colo do pai, quando o pai era toda a fortaleza que conhecia. Ele gesticulava conversando com um rapaz. Eram gestos fortes, decididos. O outro rapaz apenas ouvia, sem nada dizer. Então, começou a falar e seus gestos eram mais fortes e pareciam brigar com Júnior. Parecia que brigavam. Jorge, então, viu o filho mudar. Ele explicava alguma coisa, pedia, depois brigava. O outro respondia mais violento. Quem era aquele homem? Jorge não conhecia. Não era ninguém da pizzaria. Conhecia todos lá e tinha certeza que reconheceria todos. Era um desconhecido. A discussão continuava cada vez mais violenta até que o filho empurrou o rapaz, que caiu no chão. Jorge estava tenso e orgulhoso. O que viria agora? Foi então que algo brilhou no rapaz. Jorge não viu o que era, mas viu o filho dar um passo pra trás.
Jorge afastou-se da janela num salto. A mulher dormia na cama. Queria voltar e ver o que acontecia, agarrar-se a sua janela de onde via tudo acontecer lá embaixo, a distância lhe dando toda a segurança de que precisava. Bastava voltar e pronto. Mesmo que visse o filho ser morto, ainda assim, estaria em sua janela de onde observava o mundo. Ali. Seguro.
Bastava voltar e olhar.
Jorge saiu correndo pela casa até a porta da rua, saiu porta afora num galope violento. Não sabia o que fazia ou pensava, apenas corria como uma flecha. Uma flecha certeira e caçadora que uma vez lançada só para no alvo fatal.