terça-feira, 18 de setembro de 2012

Conto: SEGUNDA-FEIRA


O Conto SEGUNDA-FEIRA abre o livro CADA DIA SOBRE A TERRA, em que cada conto se passa num dia da semana e é influenciado pelo orixá reinante no dia.






Segunda-feira

— Mas o senhor veio pelo Campo Grande, moço? Tudo engarrafado? Assim não chego lá hoje.
O táxi estava parado em frente ao Palácio da Aclamação, num congestionamento de uma segunda-feira. A mulher, branca, aparentava mais de cinquenta anos. Os cabelos cacheados eram em tudo naturais. Mantinham o desalinho dos cachos e os grisalhos, que tomavam toda a cabeleira, enfiados entre os cabelos pretos da juventude. Ela arfava de um calor que sentia sozinha naquela manhã ainda fresca, abanando-se com um lenço branco, que, de vez em quando, passava no pescoço que se avermelhava. Os seios grandes, brancos, apareciam no decote amplo da bata também branca.
— Nem sei por que reclamo. Pior era quando o jornal ficava na Paralela. Um inferno! Muito longe, muito longe. Eu levava uma vida pra chegar. Em São Lázaro é muito melhor. Se pelo menos o senhor não tivesse vindo por aqui.
O motorista olhou pelo retrovisor sem dizer nada. Tinha perguntado por onde ela queria ir quando a pegou no Jardim de Nazaré, percorreu toda a Av. Joana Angélica e a passageira não disse uma palavra sobre o itinerário e agora era como se acordasse finalmente.
— E tenho de chegar cedo, cortar um texto. Agora tem de escrever pouco, umas notinhas apenas. Nada mais de matérias longas, nada de aprofundamentos. Não tem mais lugar para isso no jornal. Tem de ser rápido. Fácil de ler, como na internet. Agora tudo é internet. Pouco texto, muita foto. Ninguém mais lê, moço. O senhor lê jornal?
O motorista fez menção de falar.
— Lê as manchetes, já sei. Hoje em dia só se lê isso. E eles querem que a gente dê conta de contar tudo na manchete. Vai acabar assim, o senhor vai ver. E cultura, então, já era. Eu fiz uma matéria tão boa sobre o Ilê. O senhor foi no Ilê sábado? Foi o concurso da Beleza Negra. Tão bonito! Gosto dessas coisas. O Ilê tá com tudo. Eu lembro do começo deles, a luta que foi. Eu era nova no jornal. Quer dizer, eu era nova, nova de tudo, não era isso que o senhor tá vendo. Outros tempos. Agora, acabou-se. Fui lá com preconceito, não vou negar. Coisa de negros. Hoje não tenho preconceito. Tenho até amigos negros. Trato todo mundo igual.  Namorar não namoro, isso não. Sei lá. É uma questão de gosto, sem racismo. Na época até namorei, era a contestação. A gente ia contra aquela repressão da ditadura, cabia isso. Meu pai quando me viu com um colega da faculdade, mulato, ficou uma fera. Minha filha criada no Instituto Feminino agarrada com um tição. Ele gritava dentro de casa. A gente morava no Jardim Baiano, no tempo que era um lugar bom. Meu pai tinha fazenda de cacau, um monte de padarias e mercados na cidade, era filho de português, minha mãe era galega legítima, só nasceu aqui, mas a família era toda da Galícia. Fui bem criada, mas esse tempo acabou. Acabou-se, moço, acabou-se. O Ilê começou com aquela bobagem de não aceitar branco, era a luta deles. Falei tudo na minha matéria. Chamei de Que bloco é esse? Por causa da música, o senhor sabe. Contei toda a história da formação deles. Eu tava lá! E qual foi a ordem? Cortar, cortar, cortar. Nada disso, só uma notinha, mais nada. Aí, vou eu lá cortar, cortar, cortar. Que jeito?
O carro já passava pela Reitoria.
— Como se eu não tivesse mais nada pra me preocupar na vida. Tá certo que, sem os filhos, a preocupação diminui. Meia verdade, filho sempre dá dor de cabeça. A menina tá morando em New York. É assim que ela fala. Antigamente a gente botava tudo em português nas matérias. Hoje é no original, tudo estrangeiro. E essa mania de baiano de por nome americano. Aí escreve tudo errado. Onde tem w bota u. Um horror! E o Michael Jackson? Já viu o tanto de Maicon e de Jáquison que tem nesse país? A gente não dá conta. Minha filha tá lá. O marido tá trabalhando numa multinacional. Ela não faz nada. Estuda inglês e só. Querem ter filho lá, aproveitar pra ver se ele nasce americano. Quem dera, hein, moço, eu ser avó de um americaninho.
A mulher olha para o aviso de não fumar no vidro do carro.
— Aqui não pode fumar, né? Não pode fumar em canto nenhum dessa cidade. Meu médico me mandou parar. Disse que cigarro mata. Ah, se eu tivesse certeza disso? Tenho de ligar pra minha filha, saber como ela está. O problema é que eles não têm telefone lá. Só ligam pelo computador. A tal da internet. Uma ligação esquisita. E tem de ver um dia que eles estejam conectados. Muito difícil. A gente combina por e-mail, mas nem sempre dá certo... o senhor não fuma, não, né?
Ela batucou de leve na porta do carro.
— Meu médico mandou parar.
A mulher ficou olhando as pichações no muro do Hospital das clínicas.
— Aqui tinha sempre uma pichação: Fora Sarney, Fora Collor, Fora FHC... eles só mudavam o nome, o “Fora” era o mesmo. Eles estão todos lá agora. Não tem mais luta, moço, agora é cada um por si. Eu tô cuidando de mim. Vou lá ajeitar minha matéria, cortar tudo bem obediente. Não posso ficar sem trabalhar. Ai, ai. Sou um dinossauro. Se saio da linha, eles me notam e me mandam embora.
Abriu mais a janela do carro, baixou o último dedo de vidro que faltava, uma mudança mínima, e enxugou a testa.
— Tem muita gente nova por aí. Todo mundo conectado na internet. Eu que não me cuide. O que eles não sabem é escrever, mas são super descolados. Lá na redação tem uma novinha, toda antenada a cadelinha. Tatuagem, roupinha descolada, magrinha ela. Aposto que minha matéria vai abrir espaço pra um perfil que ela vai fazer de uma banda de rock, ou sei lá o quê, que nem disco tem. Eles lançam as músicas na net, ela falou, toda elétrica. Uma bobagem. Eu ouvi. Uma música que não anda, toda cortada. Não gosto disso não. Minha filha deve gostar.
Olhava pra fora, mas não via mais a rua, os olhos grudados no vazio.
— Tenho de ligar pra ela.
Olhou pra nuca do motorista.
— Eu tenho um filho, sabia? Mora em São Paulo com o pai.
E voltou a cabeça para a rua.
— Eu que não trabalhe. Vou lá e corto essa bendita matéria. Vou dar uma notinha e pronto. Nem posso demorar, esse médico marcado. Tantos exames! Não sei pra quê.
Em frente à entrada da Av. Euclides da Cunha, o carro para novamente. O Sinal vermelho.
— Já tive apartamento aqui na Graça. Vendi. Muita conta, o condomínio era muito alto.
Olha para a floricultura do outro lado da rua, exatamente em frente da saída da avenida.
— Essa floricultura aí é um perigo. Pra mim, qualquer dia um ônibus perde o freio e desce direto. Toda vez que passo aqui me dá uma aflição. Fico imaginando o ônibus entrando e matando todo mundo. Quando morava aqui eu ia longe pra comprar flores. Tinha medo de morrer esmagada. A gente tem uns medos bobos, né, moço. E nem adianta. No dia de morrer a gente morre e pronto. Não adianta espernear.
Ela se cala um pouco. O carro começa a subir a ladeira que vai dar no Campo Santo. O trânsito vai lento, o táxi segue atrás de um ônibus. A mulher parece mais e mais incomodada.
— Esse trânsito! São essas faculdades. Todo dia é isso. Antes tivessem deixado o jornal na Paralela. Pra que mudar? A gente só muda pra pior. E agora é cortar e cortar. Eu tô ficando sem espaço, eu e a cultura dessa cidade. Agora é a violência, o crime, o crack... bandido tem mais destaque que artista. Antes era uma página pros bandidos e o jornal livre pras outras notícias. Agora é só sangue. E é em todo canto, não tem mais jornal que não fale de crime. Até no horário nobre da televisão é assim. Olha só, era aqui que eu vinha comprar flores.
Estavam em frente ao Campo Santo.
— Engraçado. Tinha medo de morrer e vinha comprar flores no cemitério. Que ironia. Sabe que nunca mais comprei flores? Em Nazaré é mais difícil achar. Também, nem estou mais nessa de enfeitar casa. E o dinheiro é mais curto. Outros tempos. Mas não peço dinheiro a ex-marido. Tenho meu orgulho. Quando minha filha vier me visitar, compro flores. Ela vai ter de vir, vai ter. A gente não se fala muito, mas ela vem. Vou ligar pra ela. É minha filha, poxa. É isso que vou fazer hoje. Edito a matéria, vou ao médico e ligo pra ela. Pronto. Um dia todo organizado. É preciso ter um pouco de ordem no dia, planejar. Assim tudo dá certo.
O carro avança e passa em frente ao CEPHAR, antes de entrar na estrada de São Lázaro.
— No meu tempo não tinha isso de planejamento familiar. A gente tinha filho e pronto. O pai dos meus é esse homem horroroso. Penei muito. Antes tivesse me deitado com o mulato. Quem sabe no que ia dar, hein? Quem sabe? A gente acha que está fazendo tudo direitinho, a vida toda organizada, tudo planejado, mas, quando vai ver, já meteu os pés pelas mãos. Eu me ferrei legal. Se tivesse planejamento familiar naquela época, pelo menos uma injeção para não menstruar... ah, a vida sem cólica que bom seria. Eu já passei cada uma. Mulher sofre, meu senhor, mulher sofre. Tem que aguentar marido, filho, pai doente, mãe maluca, controlar a empregada assanhada com o seu marido, trabalhar para poder dizer que é independente, tudo isso e com cólica e salto alto. E depois, depois a gente é largada sozinha num canto, num apartamento grande e velho, num bairro que já era. A gente já era. Fazer o quê? Dizer que é jornalista? Pensar a cultura da terra, dar opinião, defender uma causa?  Nada. Tem de cortar. Seu box é pequeno, ele disse. Mantenha-se no seu limite. E todo dia lhe tiram um pedaço de espaço. É um comercial maior, é uma matéria sobre mais uma chacina, são as novidades da tecnologia, todo dia um pedaço de texto que lhe arrancam. E você não pode fazer nada. E a identidade cultural baiana? Corta. A música? Corta. O candomblé? Corta. Nada mais serve. Quando a gente se dá conta, eles já estão cortando nosso peito fora, tirando tudo. Sobra o que? Uma notinha, uma linha, uma nesga de espaço no papel, um buraco no peito. Faz um blog, eles dizem, escreve num lugar que ninguém vê, um mar de gente dizendo coisas sem sentido. Hoje é assim, moço. Todo mundo pode falar, não precisa estudar, não precisa faculdade, não precisa ser jornalista. Liga o computador e fala. E eu? Eu tenho de cortar, diminuir, espremer num cantinho de jornal trinta anos de história. E a minha história? O que eu faço? Engulo? Esqueço? Atiro pela janela? Eu me atiro pela janela? É isso? Eu me mato? Eu me mato? É isso que eles querem: me matar. Pois não vou morrer. Não vou. Eles que me aguentem assim, inteira. Não conto nem mais um pedaço, nada, nada, nada...
O carro já seguia em frente à faculdade de filosofia da UFBA, no final da rua.
— Mas o que o senhor está fazendo aqui? Já passou do jornal, moço.
— A senhora não disse onde era.
— E o senhor não sabe? Um motorista de táxi? Olhe! Me deixe aqui na igreja, me deixe aqui, vá.
O Táxi parou em frente à igrejinha branca de São Lázaro. A mulher pagou e desceu do carro, que arrancou em seguida. Ela ficou ali parada, sem olhar para a igreja. Olhava para o lado do mar, que se podia avistar dali por entre os hotéis de Ondina. Sentou-se na mureta e ficou observando o jogo de futebol no campo da universidade lá embaixo. Podia ver que aqueles meninos não eram universitários, novos ainda, adolescentes, muito jovens, muito irritantemente jovens e saudáveis e cheios de energia e de vida e alegres e descuidados.
Descuidados como só os muito jovens podem ser.
Ela ofegava. Estava sem fôlego da explosão de agora há pouco. Tinha se dado conta do quanto falara. Desde que entrou no táxi, estava falando. Ficou tentando imaginar o que o motorista tinha achado daquilo tudo, mas nem mesmo conseguia lembrar do rosto dele. Não reconheceria se visse novamente. Ficou ali respirando devagar. Lembrava da ioga? Tentou uma respiração profunda, mas só conseguiu ficar tonta. O ar faltava. Pensou que fosse mesmo desfalecer ali sozinha, numa manhã de segunda-feira pior que todas as outras.
— A senhora está sentido alguma coisa?
— Hein?
A jovem vestida de baiana de acarajé olhava pra ela.
— Veio visitar a igreja? Tá fechada hoje.
— Não, não vim ver a igreja, não, minha filha. Faz tempo que não entro em igreja.
— Veio tomar banho de pipoca?
— Como?
A moça mostrou a bacia que carregava apoiada na cintura. Estava cheia de pipoca.
— Não, minha querida, não acredito nessas coisas.
A menina riu.
— Tem certeza?
— Tenho.
— Não que tentar? Mal não faz.
— Não.
A menina sentou-se a seu lado. E colocou a bacia no colo. Mexia nas pipocas enquanto falava.
— Às vezes eu também não acredito, aí eu jogo as pipocas, junto com minha mãe, que é feita, e as pessoas se sentem tão bem.
— E sua mãe sabe que você não acredita?
— Falei pra ela um dia. Aí ela me disse pra eu não me preocupar que ela acreditava por mim.
— Compreensiva ela.
— Não é? Aí eu relaxei. Às vezes acredito, às vezes não, vou levando.
— E por que quer me dar o banho?
— Achei que a senhora estava querendo.
— Estou não.
— Tá bem.
Ficaram as duas sentadas olhando pro horizonte. Não falaram nada por alguns minutos. Soprava um vento fresco vindo do mar. A mulher descansava. Ela se sentia como se tivesse corrido uma maratona, a respiração difícil ainda. A jovem apenas a observava enquanto mexia as pipocas na bacia.
A mulher olho pra menina e riu suave.
— Já disse que não acredito.
— Eu sei.
— Então, por que não vai embora?
— Não tenho o que fazer agora, não.
A mulher se levantou.
— Bom, eu tenho de ir.
— Olha, se a senhora não acredita, tudo bem. Eu posso acreditar pela senhora.
A mulher achou engraçada a menina e riu.
— É! Hoje eu estou num dia de acreditar. Posso acreditar pela senhora.
Vencida pelo encanto que era aquela moça assim solícita, tão jovem e bonita ainda, a mulher aceitou.
— Está bem.
— Ótimo.
A jovem se levantou e começou a despejar sobre a cabeça da mulher as pipocas. Usava a mão direita e despejava aos poucos. Tinha um ar solene. Despejou quase metade da bacia.
— Pronto.
— Acabou? É só isso?
— É. Tá vendo? Acreditando ou não, nem dá trabalho.
A mulher sacudiu a cabeça e com as mãos tirou algumas pipocas que tinha grudado no cabelo. Sacudiu a roupa e se despediu.
— Agora eu vou.
— Vai em paz.
A mulher começou a voltar pela estrada. Caminhava devagar, sem pressa. Já respirava melhor. Não sabia mais o que ia fazer no jornal, nem lembrava o que devia fazer naquele dia. Tudo estava em branco no seu planejamento. Sabia apenas que devia voltar. Talvez até nem devesse ir ao jornal, podia voltar para casa ou ir a outro lugar. Podia fazer qualquer coisa. Que importava agora?
Sentiu no vestido, dentro do decote, alguma coisa que lhe incomodava. Procurou e achou no peito esquerdo uma pipoca pequenina. Ainda lá dentro do peito, por dentro da roupa, amassou a pipoca até ela ficar bem triturada. Uma onda de alívio invadiu seu corpo, sentiu um prazer real, como se alguém que a amava muito estivesse acariciando seu peito. Pela primeira vez em muito tempo, sentiu que as coisas podiam dar certo e que não estava acabado ainda.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

COMO FAZER UM CIGARRO DE MACONHA



Era uma noite em Recife. Eu estava na casa de amigos no bairro de Boa Vista. Estava ali hospedado, em férias, e acontecia uma festa. Em determinado momento, alguns amigos foram para o quarto. Hoje eu sei, mas àquela época não, que este sutil movimento dos cantos, o êxodo silencioso para os quartos, a súbita discrição, esse reconhecimento ancestral de pessoas que mal se conhecem, um entendimento tácito dos olhares, todos esses índices conduzem a um único ponto. Desatento que era e sou, fui também ao quarto. Lá estavam os amigos desembrulhando um pedaço de jornal com a maconha. Fiquei por ali olhando entre curioso e cansado. Não tenho nenhuma curiosidade por drogas, assim como não gosto de álcool, que me dá sensações desagradáveis. Não gosto desse tipo de embriaguez. É apenas não gostar, como quem escolhe andar pela esquerda e não pela direita... ou, talvez, um fastio, uma birra, como a que me fez recusar a chupeta quando criança. Minha mãe conta que a minha rasgou, não acharam outra igual. Veio uma maior, outra menor, sempre diferentes. Recusei todas. Talvez isso, talvez nada disso. O desejo de explicar tudo é a primeira prepotência humana.
Eu estava lá, olhando a intrincada operação de fazer um cigarro de maconha. Devia ser algo muito difícil, pois todas as tentativas resultavam em desastres. Os cigarros eram tortos, uma hora cheios demais, em outras, desfaziam-se.  Foi então que eu disse: eu sei fazer cigarros.
Eles não acreditaram. Eu, que nem bebia, ia fazer os cigarros?
O fato é que eu sabia. E muito bem.
Nunca gostei de fumar cigarros, apesar de todos na minha família fumarem. Decididamente, neste aspecto não sou fruto do meio. Algumas vezes, quando minha mãe me pedia para ir buscar a carteira de cigarros, eu acendia e já trazia acesso. Recebia uma bronca leve, sem muita convicção e pronto. Tentei umas vezes, mas não gostei.  Gostar ou não de alguma coisa talvez dependa dessas pequenas experiências na infância. Lembro que levei minha adolescência inteira sem gostar de creme de leite. Tinha ânsias de vômito só de pensar. Até que um dia, sabendo que ele compunha a receita de um doce, passei a vê-lo com melhores olhos, ou paladar.  Os enjoos passaram. Nada mais natural, já que os doces são as minhas drogas com seus males e prazeres e contra os quais luto diariamente.
Quanto aos cigarros, aprendi a fazer na adolescência. Tinha um avô que fumava cigarro de palha, com fumo de rolo, daqueles comprados na feira. Ele não podia fazer sozinho. Já estava velhinho. Aliás, desde que me lembro, ele era assim. Ele não tinha movimento de um dos braços, por causa de um tiro que sofreu numa emboscada de um ex-capataz, uma história a ser contada em outra oportunidade. Eram os tempos mais selvagens do sul da Bahia. Ele também já estava completamente surdo, um mal mais prosaico, causado pelo destino dos genes. Bem, desde muito pequeno, eu tinha de sentar a seu lado. Ele, naquelas cadeiras de lona de diretor de cinema americano, tão comuns no interior, eu, num banquinho.  Tinha de tirar pedaços de fumo do rolo, fatias finas, depois colocava uma quantidade na mão e esfarelava, ou desfiava, como se desfia frango cozido.  Fazia isso na palma da mão, que guardava aquele cheiro por dias.  Pegava o papel de fumo e colocava uma porção exata. O segredo era essa quantidade, que dava um cigarro na medida certa. Com a prática, eu fazia todos os cigarros iguaizinhos. Depois, era preciso enrolar o papel. Primeiro, o papel ainda apenas dobrado, fazia a quantidade de fumo ganhar a forma certa. Só então enrolava o papel, usando o canivete para prender a ponta interna dentro do rolo, da espiral que seria feita. Com saliva fazia-o colar. Ainda com o canivete, empurrava a pontinha dos canudos de fumo para dentro, fechado o cigarro nas duas pontas.
Com as variações necessárias, fiz lá os cigarros de maconha. Ficaram bons na medida do possível que o papel não era o adequado. Havia muito improviso naquela noite. Logo eles acenderam o cigarro, que passou de mão em mão. A fumaça subindo espessa fazendo círculos que se transformavam em espirais, mas que se embolavam no caminho e se espalhavam como um borrão branco. Aos poucos a conversa seguiu o mesmo caminho, os assuntos circulavam em torno da roda, enrodilhavam-se na tentativa da espiral ascendente e logo se desfaziam numa massa informe de risadas. Novamente, uma tragada, nova baforada de ideias, formava-se a primeira curva da espiral, a segunda; mas, de novo, o borrão. Outra tentativa, outra e outra e agora nem mesmo a primeira curva se formava. Tudo era apenas borrão. Desinteressei-me, saí do quarto. Eles ficaram lá dentro esfumaçados e vagos em suas dissipações.