sexta-feira, 5 de junho de 2015

EXERCÍCIO: O mesmo disco

Em uma das oficinas do Projeto Escritas em Trânsito, Carol Bensimon propôs os seguinte exercício: escrever um conto com estas frases retiradas de um conto de Caio Fernando Abreu: 1) Ué, você resolveu cuidar de mim, é? 2) O disco tá tocando de novo. Já ouvi esse pedaço. 3) Aqui embaixo diz Produced in China.

O MESMO DISCO

Por Marcus Vinícius Rodrigues

— Ué, você resolveu cuidar de mim, é?
A mão pegajosa já estava em minhas costas. Um cheiro cítrico entrou em meu nariz. Pensei que fosse laranja ou tangerina.
— É essência de bergamota. Não conhecia?
Não conhecia, mas sabia que mesmo que não perguntasse nada, ia saber.
— É ótimo anti-inflamatório. Essa dor logo passa.
As costas relaxavam. Um calorzinho gostoso começava. Quase me arrependi da explosão. Podia ter tido mais paciência.
— E alivia o estresse.
Mas a conversa recomeçou. Eu é que era estressado, eu é que não tinha harmonia com a natureza. Eu é que precisava abrir o chacra cardíaco, meditar numa luz verde.
— Da uma olhada na cor desse unguento.
Estendeu a mão para a frente do meu rosto.  Verde.
— Você vai ficar bom rapidinho.
As costas ou o chacra? Eu quis perguntar, mas isso seria recomeçar a briga. Ia voltar aquela história toda do IChing, sei lá quantos hexagramas, por que eu sou terra, porque não dá pra viver sem saber a hora exata do nascimento. O mapa astral que nunca fiz, o livro de Caio Fernando Abreu que eu nunca li, o seu Caio F., o irmãozinho da Cristiane... já sei, já sei, nem preciso ler pra saber de todas as histórias, mas eu precisava, insistia, era preciso rever o lugar da emoção, ali pelas costas, a massagem por trás do peito, era preciso escutar Keith Jarret suavemente.
— O disco tá tocando de novo. Já ouvi esse pedaço.
Levantou, foi trocar o disco, as mãos verdes. Minha vontade era não deixar. Toda a sujeira verde que ficaria. Mas, se fizesse isso, o disco não pararia de tocar e eu teria de ouvir tudo de novo. O melhor era ficar quieto e esperar que aquela gosma toda entrasse pelas minhas costas e abrisse de vez o chacra.  Me virei para encontrar o frasco, as costas tinham mesmo parado de doer. Era um frasco pequeno e redondo, de vidro escuro, um profundo verde garrafa, sem rótulos nas laterais, mas embaixo tinha uma etiqueta.
— Onde você encontrou isso?
— Na chapada, claro. É natural.  Você devia ir comigo da próxima vez. Ia ser ótimo para você.
O disco recomeçou. O outro lado. Vinis tem dois lados, eu tinha esquecido. Eu sabia que não ia escapar sem luta. Então eu disse:

— Aqui embaixo diz Produced in China.


* Enfiei uns trechos de Bruna Lombardi pelo meio.