E depois ... Ah! Depois de dores tamanhas,
nascerás outra vez de outras entranhas,
nascerás outras vez de uma outra mãe!
Florbela Espanca
Quando abro o Livro de
Mágoas desta outra que também sofreu e encontro a flor perdida entre as
páginas, morta, ressequida, suspensa no tempo, sinto ainda aquele cheiro de
minha infância. Eu andando pelo corredor, então comprido, as meias escorregando
pelas pernas, o vestido de festa já encolhido de meus anos que passavam. Tão
pouco uso e já perdido. Quase virgem. Eu também, que alguma apreensão já se
entranhava na alma. As pessoas falavam baixinho. Um murmúrio solene de
capela. Doía-me na barriga, bem lá embaixo, uma dor fina e
desconhecida que às vezes me fazia torcer o vestido que encurtava. Não via
minha mãe, não via meu pai, só desconhecidos que olhavam a minha passagem. Ao
centro de nossa sala de jantar estava a caixa negra, comprida, colocada sobre a
mesa. Não podia ver, pois ainda não era tão alta. Nem precisava, que já sabia
da morte ali deitada, a ausência para sempre de que falou minha mãe. Deus chama
primeiro os bons... Naquele momento meu coração estava vazio, eu estava vazia
dentro daquele vestido de festa; só aquela dorzinha fina me avisando de dores
maiores, flores pelo chão e aquele
cheiro que me perseguia deste aquele dia.
O mundo ainda desconhecido, uma gravidade adivinhada. Meu irmão, morto.
Eu sabia que aumentaria a solidão de nossa casa, que já era muita, isolados que
vivíamos naquela distância. Meu pai, minha mãe, eu e Jacinto. Uma flor. E eu
também. Vou te despetalar todinha, Margarida, dizia, me fazendo cócegas. E eu
ria e tentava me soltar, correndo pelo jardim de nossa mãe. Nesse podíamos
passear. Além da cerca ficavam as outras flores, as de nosso pai. Essas nós
víamos pouco. Essas não são flores, ele dizia, são nosso ganha-pão. E ficávamos
admirando de longe as flores que eram pra vender. Todas iguais em suas
fileiras. Recebiam água na hora certa, eram cobertas em noites frias, tão bem
cuidadas. E quem é que precisa comprar flor, Jacinto? Elas nascem tão fácil é
só esperar a época. É o povo da cidade. Lá não tem jardim, sabia? Só um monte de prédios altos, asfalto,
cimento. Por isso as pessoas compram
flores. Compram para pôr em casa, num vaso, compram para dar de presente. Eu
queria conhecer a cidade. Não pode, você é criança. Mas você já foi lá. Comigo
é diferente, eu já sou grande. Era verdade. Jacinto, mais velho, de repente
ficou mesmo muito mais alto que eu. As pernas ficaram compridas e começaram a
ter uns pêlinhos. A voz ficou diferente, mais grossa, passou a não brincar comigo como antes. Nessa época,
passou a ajudar nosso pai. Eu tinha inveja dele naquele mar de flores o dia
todo, tantas que não sabíamos mais qual o cheiro de cada uma. Todas se
misturavam e era como se estivéssemos sempre mergulhados num vidro de perfume.
Eu tinha saudades de nossas brincadeiras, sua falta me doía o dia inteiro,
esperava ansiosa o fim da tarde, quando
ele voltava trazendo um botão de alguma flor diferente. Essa é do seu tamanho,
ele dizia. Eu guardava a flor, ela ia abrindo as pétalas dia a dia até ficar
plena, madura, a cor brilhando úmida. Depois apagava, murcha, as pétalas iam
caindo e morria, vazia de qualquer cheiro. E nesse dia Jacinto já me trazia uma
outra flor em botão. Meus dias passavam como aquelas flores. Nascia na mão de
Jacinto e morria na sua ausência. Seu olhar, seu toque eram como água e luz
para mim: meu querido irmão.
Um dia, tanto insisti que
Jacinto me levou para brincar no campo de flores. Era um final de tarde quente,
saímos correndo pelos corredores perfumados.
Ele dizendo que ia me pegar. Vem cá sua flor fujona, vou te colocar de
novo no vaso. Uma flor bonita dessa dá boa venda. Eu corria, corria, até que
ele me alcançou. Ele me pegou e começou a fazer cócegas, rolamos pelo chão no
corredor das margaridas, eu tentava me soltar, mas ele estava mais forte ainda,
fazia cócegas montado sobre mim, seu corpo pesado, eu não agüentava mais. Pedia
pra ele me soltar, mas ele não me ouvia. Apenas insistia seu corpo sobre mim.
Tudo ficou confuso, já não sabia mais o que acontecia, um cheiro se destacou
dos perfumes das flores, cheiro quente, salgado, saindo dele, tocando minha
pele, percorrendo todo o meu corpo como uma eletricidade. Eu me sentia feliz,
feliz com meu Jacinto, meu querido irmão, meu querido amor. Eu ria, chorava,
tudo girando em minha volta. Acho que gritei, acho que senti dor, não lembro,
tudo escurecia no corredor das margaridas, e tudo mesmo me embalava como num
sonho, eu ria, gargalhava, gritava e acho desfaleci.
Acordei em minha cama, uma
febre sem razão. Jamais vi Jacinto de novo. Viajou, disse meu pai. Sua voz era
severa, como quando dava broncas na gente. Minha mãe chorava pelos cantos e eu
não sabia o que acontecia. Esperava todas as tardes ele voltar, e nada. Vi o
tempo passar, vi mudarem as flores da época. Nada. A última flor que ganhei
guardei dentro de um livro de histórias até que secou. Ela passaria, depois, de
livro em livro até aquele que traz a perfeita tradução de mim. Um dia, minha mãe
me chamou no seu quarto, estava com um
álbum de fotos aberto, eram fotos nossas quando Jacinto ainda era pequeno como
eu. Ela, então, me contou que ele tinha
morrido. De acidente, ela disse, na cidade. Tinha uma voz trêmula, incerta, e
quando eu perguntei como tinha sido, me abraçou e chorou, tanto que minha
tristeza se acalmou. Veio o caixão, as pessoas estranhas, trouxeram flores que
não eram as nossas. Flores feias e tristes. E voltou aquele cheiro no meu
nariz. Cheiro de Jacinto. Rezaram, cantaram, choraram. Por fim, saiu o caixão
de nossa casa. Eu fiquei sozinha, esperando ainda que meu coração se enchesse
daquela presença que eu lembrava. Meu coração era como um jardim sem flor.
Todas as flores do mundo estavam agora enterradas.
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