quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

A TARDE DE UM FAUNO




No futuro, todos falariam do menino que se jogou do edifício. O que teria acontecido com ele? Esse seria o mistério. Uma moradora do sétimo andar diria:
— Eu vi quando ele caiu, tão pequenino, pelo poço da escada, lá do último andar. Dezesseis andares. Tão alto, não podia ter sobrevivido.
Mas o corpo, o corpo ninguém acharia. Davi estaria longe. Ia voar para muito longe, uma distância que ninguém imagina e que pra medir é preciso dizer de um longe aonde nunca se chega, um longe de onde não se pode voltar. Ele voaria. E pra voar bastava ter pensamentos felizes, como nas histórias de fadas. Seu corpo ficaria leve, sem mais nenhum peso da dor que levava. Era só flutuar. Um vento o sopraria para longe, onde o destino o aguardava outro, feliz e para sempre. Para sempre, como nos contos de fadas, a alegria que não acaba. Era só atravessar o buraco na parede, abrir sua capa azul de super-herói e lançar-se do décimo sexto andar. Ele calculou tudo. Os olhos estavam voltados para o alto porque era esse o seu objetivo: o alto, o céu quase vermelho daquele fim de tarde, as nuvens cinza da cidade seriam vencidas e, lá em cima, por cima de tudo que havia, nuvens cor-de-rosa. Ia subir acompanhando a tarde, a medida de seu vôo. E, então, mesmo a tarde sumiria no horizonte. Restariam as estrelas da noite. Ele procuraria aquela mais brilhante que fica à direita de que vai, e depois outra, tão intensa quanto a primeira. Nesta, viraria à direita e voaria muito tempo até reencontrar novamente o sol e seu calor. Não mais a tarde que morre no horizonte da cidade, com suas cores fortes demais por causa da poluição, como aprendeu na escola. Um sol de amanhecer, com um amarelo novo e brilhante. E toda sua vida seria assim como o calor que surge para aquecer as gotas de orvalho da noite, todas as coisas brilhando como só é possível quando se amanhece pela primeira vez. Bastaria ter pensamentos felizes, quando seu pé esquerdo acompanhasse o direito, que já estava em pleno ar. Os dois pisariam o nada. Um único passo. O salto. Voar. Bastava ter pensamentos felizes.
Mas ele não tinha. Nada que pudesse lembrar era um pensamento feliz. Tentou imaginar um futuro alegre, algo bom. Nada. Tentou imaginar o Fauno levantando-o do chão como daquela vez em que tropeçou na entrada do prédio. Ele o agarrou pela cintura e o pôs de pé.
­— Machucou?
Quis correr de vergonha, mas seu corpo inteiro estava paralisado. Uma descarga elétrica paralisava seus nervos. Ia morrer ali. Era uma presa vencida. O corpo reagia involuntário, convulsionando entre as pernas. Com muito custo correu para a escada, seu refúgio. Ninguém usava as escadas. Queria ir para casa se esconder. Chegou mesmo até a porta do apartamento no quarto andar, mas desistiu. Sabia que estava vermelho. Sua mãe notaria. Resolveu subir para o último lanço da escada lá em cima, onde o décimo sexto andar se liga ao terraço do prédio, lugar abandonado e que há muito tempo era seu esconderijo. De lá podia ver as janelas do quarto e da sala do apartamento do Fauno, e mesmo uma parte do banheiro ele avistava por uma pequena janela. Os apartamentos de fundo tinham janelas para o poço central. E ali do alto da escada, pela parede vazada, ele podia avistar tudo de vários apartamentos. Era assim que ele gastava suas tardes fora de casa. Logo que estava liberado de almoço e deveres, fugia. Batia atrás de si a porta do apartamento e esquecia de tudo. O pai e a mãe desapareciam de sua vida. Ele ficava só no mundo e podia ser o que quisesse, um aventureiro, um mágico ou um cientista. O alto da escada era seu castelo e seu observatório. Lá estava o Fauno em casa, tirando a roupa. A camisa e as calças, a cueca. Estava inteiramente nu. Davi podia vê-lo inteiro caminhando pela sala. Era um corpo forte e branco. Peludo. Os pêlos negros do peito desciam pela barriga num caminho estreito e se espalhavam entre as pernas. Coxas, bunda, tudo era coberto por uma pelagem negra de fios longos, em contrate com a brancura da pele. Também nas costas, apenas no alto, uma penugem preta começava e se estendia até os ombros e escorria pelos braços até os nós dos dedos. Todo o corpo era um feixe de músculos, como uma estátua grega, como uma gravura, como a gravura no livro de mitologia. O menino logo reconheceu naquele homem o fauno de seu livro. Era o mesmo corpo musculoso e peludo. O rosto era também marcado como o da gravura: forte, sobrancelhas grossas e negras, como duas asas de corvo. Mas, de tudo, Davi ficou impressionado com as pernas fortes. Ele parecia ser menos humano da cintura para baixo, como um animal. E mesmo os pés, se não era cascos de bode como os de um fauno verdadeiro, eram tão marcadamente embrutecidos... A primeira vez que Davi o viu, ele estava deitado  na cama e alisava o próprio corpo. O menino, em sua pouca vida, não podia entender o que se passava. Até mesmo aquele corpo tão extraordinário era novo para ele. Em nada se comparava ao do pai, tão absolutamente neutro. Se lhe perguntassem por que ficou tão fascinado por aquela visão, não saberia dizer. Já tinha visto outros vizinhos nus nas suas expedições. Eram sempre muito engraçados de ver. Já tinha visto colegas da mesma idade, curiosos que estavam de comparar-se. Mas ali, vendo o vizinho nu tocando o próprio corpo, sentia algo diferente. Era como se ele tocasse de longe o corpo do menino. Se passava a mão no peito cabeludo, era como se alisasse o peito liso do menino; se descia sua mão para as pernas fortes, tocava na distância a perna fina do menino. E quando manipulou o próprio sexo parecia agarrar o menino e tentar fazê-lo crescer, esticar e produzir o gozo remoto. Gozo? Para ele era apenas um estranhamento, uma sensação boa e aflitiva, como um bombom de açúcar que deixava um buraco no sabor. E mesmo o sabor era algo sem descrição, sem modos de contar para os outros. Naquela tarde, a primeira, o pequeno Davi soube que tinha encontrado alguma coisa. Soube sem saber. Ele aprendeu um cheiro novo no corpo e fugiu assustado. Desceu as escadas correndo e voltou pra casa. Nem teve medo do que pudesse encontrar. Ele sabia o que encontraria e a certeza espantava o medo. Ele precisava de algo conhecido e familiar, precisava de um refúgio para o próprio corpo que teimava em ser outro. Precipitou a noite e abriu a porta. Nem eram três horas da tarde.
No dia seguinte, à hora da libertação, estava no hall de seu andar. Ao contrário dos outros dias, não sentia o alívio de deixar o apartamento. Estava tenso. Queria subir as escadas e olhar. Tinha pressa e tinha medo. Foi subindo devagar sem prestar atenção às janelas dos apartamentos que surgiam pelo vazado da parede. Não viu o morador que escondia garrafas vazias embaixo da cama, ou que a velha do nono dormia no sofá com um seio à mostra com  uma ferida antiga que ela cobria com um lencinho puído. Outra moradora, Dona Heloísa, procurava sua gata perdida. Morena. Ela sempre deixava o bicho escapar e depois ficava procurando de apartamento em apartamento. Davi gostava de esconder a gata e se divertir fingindo ajudar a velha. Ele achava e ganhava doces como recompensa. Tantas janelas abertas. Parou apenas no décimo quarto andar para ver o apartamento do ator. Era assim que sua mãe e os outros moradores o chamavam. E quando diziam ator, o olhar tinha um jeito diferente. Era como se dissessem o contrário. O porteiro ria dele pelas costas e a mãe lhe disse um dia para não falar com ele. Não era ator de televisão, isso ele sabia. Todas as tardes era possível vê-lo em casa mexendo em vestidos coloridos, costurando alguns. Ele sempre costurava. Um dia, quando pulava da escada no andar dele, foi surpreendido.
— Ei! Vai voar — disse o ator, quando viu o menino com um pano amarrado no pescoço. — o que você está fazendo cá em cima?
Davi disse que estava brincando.
— Mas com essa capa? Não tinha nada mais bonito? Olha, vem comigo. Eu vou lhe dar uma coisa.
Davi o acompanhou até seu apartamento. Era um quarto e sala. Todos os apartamentos dos fundos eram assim. A sala estava abarrotada de vestidos em cabides, em cima do sofá, numa máquina de costura posta no canto, em todo lugar. Na mesa, junto com pratos e xícaras usados, estavam tesouras, linhas, fitas, retalhos de tecido e um pote de botões coloridos. Davi entrou desconfiado.
— Não tenha medo. Sente aqui.
Ele tirou alguns vestidos do sofá para abrir espaço. Davi lhe perguntou se ele era ator como diziam no prédio. O rapaz olhou para  menino. Parecia ser jovem ainda, mas não era. Em torno dos olhos já começava a se instalar um leve cansaço.
— Foi isso que lhe disseram? É! Talvez eu seja um ator, mas de um personagem só. Esse aqui.
Ele pegou um vestido no cabide e pôs junto ao corpo. Depois apanhou uma peruca de mulher, cabelos pretos longos, e colocou na cabeça. Davi se assustou. Não tinha visto a peruca ainda.
— Absoluta Taylor! Este é meu personagem.
Fez uma careta engraçada enquanto balançava a peruca sobre a cabeça e fazia o vestido dançar em frente a corpo. Davi riu da brincadeira. Ele lhe contou o que fazia. Fingia ser uma cantora, se vestia de mulher e se apresentava todas as noites numa boate. O nome da cantora era Absoluta Taylor, um nome engraçado, achou Davi.
— É! Vendo pelo seu lado, é engraçado. Não era pra ser, mas é.
Também fazia vestidos. Fazia para usar e para outros atores. Ganhava dinheiro assim.
— Você quer que eu lhe faça uma capa?
Davi nem acreditou naquilo. Queria.
— Como?
Davi queria uma capa azul. Podia ter estrelas?
— Eu tenho esse tecido aqui, veja.
Era um tecido de cetim azul. Um azul escuro.
— Posso por umas estrelas também.
Davi agradeceu. A capa ficaria pronta em poucos dias. Durante esse tempo, ele passou a ir à casa do rapaz todas as tardes. Ficava olhando ele trabalhar e ouvindo histórias e brincadeiras. Ele cantava em uma boate, já sabia, mas sabia também fazer festas infantis vestido de palhaço. Nunca mais fez, mas ainda tinha a roupa. Era um palhaço vermelho e amarelo, a gola de babado enorme. Tinha um chapéu cheio de luzes que acendiam. O rapaz vestiu a roupa e pintou o rosto. Davi passou a tarde mais feliz de sua vida rindo das brincadeiras do vizinho. Uma outra ocasião, ele vestiu a roupa de Absoluta Taylor e cantou uma música em inglês. Era uma música triste, mas muito bonita. Assim eram aquelas tardes.
A capa ficou pronta. Uma capa azul cheia de estrelas. Era uma capa de super-herói, mas podia ser também uma capa de mágico, só faltava a cartola e o coelho.
— Olha, vou arrumar um material pra fazer uma cartola pra você. Preciso de papelão, de um tecido preto. Quando eu achar, eu te chamo. Experimenta aqui.
Ele colocou a capa no menino. Era larga e tinha estrelas bordadas, feitas de um tecido prateado. Amarrava no pescoço como um colarinho de camisa, bastava abotoar. Mas tinha um problema, arrastava no chão.
— Eu fiz grande porque você está crescendo. Se fizesse do seu tamanho não ia ficar voando. Quando você correr ou saltar da escada, vai ficar legal.
O menino vestiu e saiu pelo corredor. A capa voava. Nessa época, ele ainda não tinha surpreendido o Fauno. Nem mesmo usava o último vão da escada como esconderijo. Foi justamente a capa que o fez achar o lugar. Quando ela ficou pronta, ele viu que não podia levar pra casa. A mãe não ia gostar que ele tivesse conversado com o tal ator do décimo quarto. O pai, então! Foi aí que ele descobriu o esconderijo. Era um lugar deserto. No alto da escada, onde havia o alçapão para o teto do prédio, tinha um patamar. Estava sujo e era perigoso. Para subir até lá ele passava por um lanço de escada que tinha um buraco na parede. Dava medo, mas também era fascinante olhar para baixo daquela altura.
Foi aí que ele viu o Fauno deitado em sua cama. Era uma visão inexplicável, como se um deus dormisse entre os humanos. Lembrar do fauno do livro foi imediato. Ele já tinha uma sensação de perplexidade ao olhar o desenho, uma hesitação em passar as páginas. O fauno de papel estava deitado sob a sombra de uma árvore e segurava uma flauta próxima à boca. Estava no gesto de iniciar uma música e sorria um sorriso entre sedutor e maléfico, como quem convida e já anuncia: é uma armadilha, você vai se perder. Davi se perdia. Ficava horas olhando a gravura. Levava ela consigo para o colégio, para os sonhos, imaginava o fauno caminhando pelo bosque espantando os animais, correndo atrás das ninfas da outra gravura, participando de batalhas e escapando de perigos. Era sua fantasia preferida. Agora, ali em sua frente, o próprio personagem lhe aparecia, desta vez sem as tintas do livro. Era a carne viva. Ele se mexeu na cama e escapou do campo de visão de Davi. Ele teve de descer três degraus para recuperar a visão. Via entre os furos da parede e, ao mesmo tempo, não era visto. O Fauno começou a se acariciar e o toque no próprio corpo atingia o pequeno Davi em seu esconderijo.
Da escada do décimo quinto andar Davi podia ver Absoluta Taylor em seu apartamento. O vizinho vestia sua roupa de mulher. Experimentava as formas, colocava enchimentos no peito, escolhia uma peruca. Estava entretido com os preparativos para a noite. Davi não lembrou da cartola. No dia anterior, antes de subir até o alto da escada pela primeira vez, ele só tinha cabeça para a cartola que ia ganhar para fazer de sua capa de super-herói uma capa de mágico. Naquele momento ele só pensava no que encontraria lá em cima. Deixou o novo amigo com suas roupas e subiu. Não havia ninguém. As janelas estavam abertas, mas ele não estava lá. Davi ficou decepcionado. Foi procurar sua capa nova e vestiu. Não quis brincar com ela, ficou sentado num degrau no alto da escada olhando pelo buraco. Ficou quase a tarde toda naquela posição, esperando. Podia ver toda a altura do prédio e as várias janelas abertas dos vizinhos. Lá embaixo, Morena passeava pelo playground. Logo Dona Heloísa ia sair para procurar a gata. Ele pensou em descer e salvar a gata com sua capa de herói e já ia descendo as escadas, quando avistou  o Fauno. Ele apareceu na sala. Devia ter chegado da rua e o menino não o viu. Estava só de cueca. Parou no centro da sala e começou a fazer exercícios primeiro em pé, depois no chão. Usava pesos. De vez em quando ele ia até o quarto e se olhava no espelho admirando o resultado. O corpo inteiro suava. Quase uma hora depois, parou. Tirou a cueca e, nu, começou a arrumar uma roupa na cama. Depois de tomar banho, vestiu-se e saiu. A tarde acabava. Davi tinha de voltar ao apartamento. Voltar para casa era sempre doloroso, era como voltar ao buraco de onde já se conseguira escapar. Ele sabia o peso da terra e de como sufocava alguém que fosse enterrado vivo. Aquele dia, porém, o seu sofrimento era diferente. Ele tinha de deixar o Fauno. Não podia segui-lo aonde quer que fosse. Guardou sua capa num saco e desceu. Podia apenas esperar a próxima tarde.
E ela veio. Vieram muitas tardes como aquela. Ele observava secretamente o Fauno. Ele fazia exercícios todos os dias, quase sempre estava nu ou de cueca. Davi começou a ficar atento a tudo sobre ele. Logo soube que ele dormia até o meio-dia, enquanto ele estava na escola. Passava as tardes em casa e saía logo que anoitecia. Voltava tarde, muito tarde. De seu quarto, Davi ficava observando a entrada do prédio, à espera dele. Nunca pode vê-lo chegar. Dormia antes. Havia dias em que ele colocava uma música e dançava. Começava vestido. Depois ia tirando peça por peça, conforme a música avançava. Ele se contorcia e passava a mão pelo corpo. Eram umas roupas esquisitas, fantasias de cowboy, soldado, marinheiro. Um dia ele vestiu uma roupa de mágico, com cartola e tudo. Davi reconheceu a capa igual a sua, ou quase. Era preta, tinha um forro vermelho, mas tinha as mesmas estrelas prateadas, o mesmo colarinho de camisa. E aquela cartola? Teria sido Absoluta Taylor quem tinha feito? Eles se conheciam? Davi logo teve a resposta. O Fauno na casa de Absoluta Taylor. Experimentava uma roupa vermelha. Davi não sabia explicar o que se passava, eles foram para o quaro e fecharam a janela. Ficaram lá um bom tempo, até que anoiteceu. Quando Davi foi pra casa, eles ainda não tinham reaparecido. Todas as luzes do prédio se acenderam, menos lá. Tudo estava apagado e secreto no apartamento do ator.
Ele não queria ir mais à casa do ator.
— Você não foi mais lá em casa. Quando vamos fazer aquela cartola?
Davi hesitou. Tinha raiva do rapaz. Não sabia por que, mas tinha. Por outro lado, queria saber mais sobre as janelas fechadas. Ele não sabia? Sabia. Seu corpo já lhe ensinava. Um alarme obscurecido tinha sido disparado, mas era com se falasse uma outra língua. Era preciso traduzir para entender tudo. E as janelas fechadas faziam ele imaginar com clareza tudo o que se passava lá dentro. Ele não estava lá, mas aquele quarto fechado se escondia dentro dele e queimava. Era uma bomba latejando sua contagem regressiva. Quando iria explodir?
Davi acabou indo à casa do rapaz. Queria tocar aquela roupa vermelha.
— Vou fazer um pouquinho maior pra durar mais tempo.
O rapaz media sua cabeça com uma fita métrica. Davi estava crescendo, ele já sabia. A capa era mais comprida, suas roupas eram maiores, a cartola era maior. Todos lhe davam algo maior que ele. Era preciso crescer para conquistar as coisas, caber dentro delas. Nada no mundo tinha seu tamanho. Aquelas sensações todas que rodeavam sua cabeça e seu corpo também eram assim, maiores, folgadas, distantes. Ele precisava crescer para caber nelas, para entendê-las. O relógio fazia tic-tac e não avançava. Parecia uma eternidade.
— Onde você achou isso?
Uma calça vermelha. Davi tinha achado. Teve de procurar entre o amontoado de roupas, que vasculhou com um ar displicente. As laterais da roupa tinham uma costura feita com velcro, fácil de descolar.
— É uma calça de teatro. É feita pra se tirar rápido. Não, não significa nada. É só uma calça vermelha. Me dê aqui.
Ele tomou a peça de Davi e guardou. Voltou a cuidar da cartola.
— Veja, eu tenho o tecido certo. Acho que amanhã está pronto.
Davi deixou o apartamento sem muita expectativa. Já não ligava mais para o presente. Pensava apenas no toque daquela roupa na sua mão. Um toque que logo se juntaria a outro. Na entrada do prédio, aquela queda. Duas mãos grandes e quentes seguraram a sua cintura  e o levantaram. O Fauno. Ele o ergueu até a altura dos olhos antes de colocá-lo no chão. Nunca esteve tão perto. Olho com olho, boca com boca.
— Machucou?
Ele falou com um sorriso discreto nos lábios. Era a gravura do livro que se materializava na frente do menino. O mesmo sorriso que convida e avisa: é uma armadilha, como um tigre no último instante antes do salto. Botou o menino no chão e passou a mão em seus cabelos, bagunçando tudo que já estava bagunçado. Ele correu para a escada e subiu, subiu toda aquela altura de uma vez. Quis ir pra casa, mas desistiu. Quando chegou lá no alto, estava quase sem ar. Seu corpo pegava fogo. Logo, o Fauno chegou ao apartamento e começou a tirar a roupa. Ia tomar banho. Davi podia sentir aquelas mãos ainda quentes no seu corpo. Tocou os cabelos que elas tocaram, tocou a cintura e continuou se tocando, enquanto relembrava cada sensação, os olhos fixos no homem nu ali à sua frente. A bomba relógio do seu corpo latejava cada vez mais rápido, cada vez mais rápido, até que explodiu em gozo. O primeiro. O corpo todo se retesou, bombardeado por correntes elétricas. Era quase uma convulsão. Davi ficou surpreso com aquela novidade de alegria. Um prazer que nunca tinha sentido antes. Ele se sentiu como se tivesse crescido, como se já coubesse nas roupas largas. Seu corpo, agora, se revelava maior do que era. Ele estava maior.  Ficou olhando o Fauno tomar banho. Estava no buraco do alto da escada. Nesta hora, ele foi descoberto. Da janelinha do banheiro o Fauno o viu. Novamente seus olhos se encontravam. O Fauno sorriu. Era um convite? Já conhecia as armadilhas, mesmo assim, recuou assustado. Ele não sabia por que, mas tinha certeza que o homem não ia denunciá-lo à sua mãe. Qualquer outro vizinho iria reclamar da bisbilhotice, mas ele não. E Davi tinha mais medo ainda disso. Não ia mais poder ver sem ser visto, na segurança de seu refúgio. Estava exposto. Não podia esconder que olhava, que gostava de olhar, que precisava olhar. E, se olhava, queria mais, queria tocar e abraçar e se fechar no quarto com as janelas fechadas, tudo apagado e secreto. Mas podia? Aquela era uma roupa que ainda estava folgada e que não sabia direito como usar. E se aquele sorriso não fosse pra ele, e se fosse dele, um prenúncio de gargalhada? Já imaginava o Fauno e Absoluta Taylor rindo dele no quarto fechado, achando-o ridículo em suas roupas largas, a capa de super-herói arrastando no chão, sem voar, a cartola engolindo sua cabeça. Ele só queria fugir dali e se esconder. Se seu refúgio tinha sido descoberto, restava sua casa apesar de tudo. Desceu a escada correndo sem nem olhar para as janelas dos apartamentos. Ele sabia que estariam todos ali amanhã, sabia que voltaria já refeito do susto. Mas não foi assim que aconteceu.
Nos dias seguintes, não pôde sair de casa. Morena, a gata da vizinha, apareceu morta e a dona acusou o pequeno Davi de a ter maltratado. Ele foi proibido de sair de casa uma semana. Não podia fugir. Era como se o destino tivesse resolvido marcar o final daquela infância. As brigas, os gritos iam ficar para sempre em sua lembrança. Quando voltou ao alto da escada pela última vez, depois de tantos dias preso, já não encontrou as janelas abertas, nem as do Fauno, nem as de Absoluta Taylor. Quis pular do prédio, quis ter o poder de voar, mas não tinha. Quando recolheu os pés do buraco na parede, sabia que nunca mais ia vê-los. Sua história a partir daquele momento seria outra. Uma outra vida longe dali, sem uma casa de onde fugir, sem a escada como abrigo. Tudo seria uma coisa só, dentro ou fora. Foi descendo as escadas lentamente, a capa se arrastando pelo chão sujo. Tinha pena de nunca mais ver o Fauno e de nunca mais sentir tanto desejo. Os desejos seriam outros. Tão fortes quanto? Outros. Davi sempre guardaria cada sensação, aquele único toque, aquele sorriso, a voz.
— Machucou?
Quantas vezes depois quis responder àquela pergunta. Ninguém escapa de se machucar nessa vida, pensou um dia, muito tempo depois. Muito tempo depois, ainda tinha pena de não ter ganho o chapéu de mágico e de não ter entendido quem era Absoluta Taylor. Com os anos, sua sala ficava mais e mais colorida na memória, com sues vestidos fantasiosos. Soube dela um dia, bem depois, através das lembranças de outras pessoas, mas já era tarde para revê-la. Teve pena de Dona Heloísa e sua gata Morena e todos os vizinhos que nunca mais veria. Sua capa se arrastou por cada degrau daquele Edifício, como se resistisse a largar uma pessoa querida. Davi também resistia a deixar o prédio, apesar de tudo que aconteceu. Nem mesmo quis ir ao enterro do pai, mas agora, depois que sua mãe tinha sido levada pelos soldados, não podia mais ficar. Chegou à entrada do edifício, onde sua tia o esperava, resignado.
— Ah! Aí está você, meu querido.
Ela afagou sua cabeça. Era tão parecida com a mãe dele.
— Bonita capa! Vamos, seu tio está esperando. Pelo menos você vai sair desse lugar horrível!

Lugar horrível. Foi a primeira vez que Davi pensou naquele prédio como um lugar horrível. Não era assim que pensava até então. Todo o seu mundo se resumia àquilo. De algum modo, apesar dos pais, ele não sentia que fosse tão infeliz. Uma criança tem sempre todo um mundo secreto que a protege do mundo real. O mundo dele era repleto de faunos, ninfas, mágicos e heróis. Deu uma última olhada. Eles desceram a escadinha da portaria e chegaram à rua. Alguns moradores observavam pelas janelas. A do seu apartamento estava fechada. Era um dia de janelas fechadas. Na calçada, um vento forte soprou levantando poeira e cegando o menino. Sua capa foi erguida. Por alguns instantes ele experimentou o vôo. Teve vontade de nunca mais abrir os olhos, de ficar pra sempre como se voasse, bastava ter pensamentos felizes: uma mão surgiu de sua lembrança e o levantou no ar. Machucou? Davi sentia que nada no mundo podia machucá-lo.

In Eros resoluto, 2010, P55 edições.



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