segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

A mais bela flor da alma



E depois ... Ah! Depois de dores tamanhas,
nascerás outra vez de outras entranhas,
nascerás outras vez de uma outra mãe!
Florbela Espanca

Quando abro o Livro de Mágoas desta outra que também sofreu e encontro a flor perdida entre as páginas, morta, ressequida, suspensa no tempo, sinto ainda aquele cheiro de minha infância. Eu andando pelo corredor, então comprido, as meias escorregando pelas pernas, o vestido de festa já encolhido de meus anos que passavam. Tão pouco uso e já perdido. Quase virgem. Eu também, que alguma apreensão já se entranhava na alma. As pessoas falavam baixinho. Um murmúrio solene de capela.  Doía-me  na barriga, bem lá embaixo, uma dor fina e desconhecida que às vezes me fazia torcer o vestido que encurtava. Não via minha mãe, não via meu pai, só desconhecidos que olhavam a minha passagem. Ao centro de nossa sala de jantar estava a caixa negra, comprida, colocada sobre a mesa. Não podia ver, pois ainda não era tão alta. Nem precisava, que já sabia da morte ali deitada, a ausência para sempre de que falou minha mãe. Deus chama primeiro os bons... Naquele momento meu coração estava vazio, eu estava vazia dentro daquele vestido de festa; só aquela dorzinha fina me avisando de dores maiores,  flores pelo chão e aquele cheiro que me perseguia deste aquele dia.  O mundo ainda desconhecido, uma gravidade adivinhada. Meu irmão, morto. Eu sabia que aumentaria a solidão de nossa casa, que já era muita, isolados que vivíamos naquela distância. Meu pai, minha mãe, eu e Jacinto. Uma flor. E eu também. Vou te despetalar todinha, Margarida, dizia, me fazendo cócegas. E eu ria e tentava me soltar, correndo pelo jardim de nossa mãe. Nesse podíamos passear. Além da cerca ficavam as outras flores, as de nosso pai. Essas nós víamos pouco. Essas não são flores, ele dizia, são nosso ganha-pão. E ficávamos admirando de longe as flores que eram pra vender. Todas iguais em suas fileiras. Recebiam água na hora certa, eram cobertas em noites frias, tão bem cuidadas. E quem é que precisa comprar flor, Jacinto? Elas nascem tão fácil é só esperar a época. É o povo da cidade. Lá não tem jardim, sabia?  Só um monte de prédios altos, asfalto, cimento.  Por isso as pessoas compram flores. Compram para pôr em casa, num vaso, compram para dar de presente. Eu queria conhecer a cidade. Não pode, você é criança. Mas você já foi lá. Comigo é diferente, eu já sou grande. Era verdade. Jacinto, mais velho, de repente ficou mesmo muito mais alto que eu. As pernas ficaram compridas e começaram a ter uns pêlinhos. A voz ficou diferente, mais grossa, passou  a não brincar comigo como antes. Nessa época, passou a ajudar nosso pai. Eu tinha inveja dele naquele mar de flores o dia todo, tantas que não sabíamos mais qual o cheiro de cada uma. Todas se misturavam e era como se estivéssemos sempre mergulhados num vidro de perfume. Eu tinha saudades de nossas brincadeiras, sua falta me doía o dia inteiro, esperava ansiosa  o fim da tarde, quando ele voltava trazendo um botão de alguma flor diferente. Essa é do seu tamanho, ele dizia. Eu guardava a flor, ela ia abrindo as pétalas dia a dia até ficar plena, madura, a cor brilhando úmida. Depois apagava, murcha, as pétalas iam caindo e morria, vazia de qualquer cheiro. E nesse dia Jacinto já me trazia uma outra flor em botão. Meus dias passavam como aquelas flores. Nascia na mão de Jacinto e morria na sua ausência. Seu olhar, seu toque eram como água e luz para mim: meu querido irmão.
Um dia, tanto insisti que Jacinto me levou para brincar no campo de flores. Era um final de tarde quente, saímos correndo pelos corredores perfumados.  Ele dizendo que ia me pegar. Vem cá sua flor fujona, vou te colocar de novo no vaso. Uma flor bonita dessa dá boa venda. Eu corria, corria, até que ele me alcançou. Ele me pegou e começou a fazer cócegas, rolamos pelo chão no corredor das margaridas, eu tentava me soltar, mas ele estava mais forte ainda, fazia cócegas montado sobre mim, seu corpo pesado, eu não agüentava mais. Pedia pra ele me soltar, mas ele não me ouvia. Apenas insistia seu corpo sobre mim. Tudo ficou confuso, já não sabia mais o que acontecia, um cheiro se destacou dos perfumes das flores, cheiro quente, salgado, saindo dele, tocando minha pele, percorrendo todo o meu corpo como uma eletricidade. Eu me sentia feliz, feliz com meu Jacinto, meu querido irmão, meu querido amor. Eu ria, chorava, tudo girando em minha volta. Acho que gritei, acho que senti dor, não lembro, tudo escurecia no corredor das margaridas, e tudo mesmo me embalava como num sonho, eu ria, gargalhava, gritava e acho desfaleci.

Acordei em minha cama, uma febre sem razão. Jamais vi Jacinto de novo. Viajou, disse meu pai. Sua voz era severa, como quando dava broncas na gente. Minha mãe chorava pelos cantos e eu não sabia o que acontecia. Esperava todas as tardes ele voltar, e nada. Vi o tempo passar, vi mudarem as flores da época. Nada. A última flor que ganhei guardei dentro de um livro de histórias até que secou. Ela passaria, depois, de livro em livro até aquele que traz a perfeita tradução de mim. Um dia, minha mãe me chamou no seu quarto, estava  com um álbum de fotos aberto, eram fotos nossas quando Jacinto ainda era pequeno como eu. Ela, então,  me contou que ele tinha morrido. De acidente, ela disse, na cidade. Tinha uma voz trêmula, incerta, e quando eu perguntei como tinha sido, me abraçou e chorou, tanto que minha tristeza se acalmou. Veio o caixão, as pessoas estranhas, trouxeram flores que não eram as nossas. Flores feias e tristes. E voltou aquele cheiro no meu nariz. Cheiro de Jacinto. Rezaram, cantaram, choraram. Por fim, saiu o caixão de nossa casa. Eu fiquei sozinha, esperando ainda que meu coração se enchesse daquela presença que eu lembrava. Meu coração era como um jardim sem flor. Todas as flores do mundo estavam agora enterradas.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Sobre o conto A TARDE DE UM FAUNO



“A tarde de um fauno”
Por Mariana Barbosa*
em 20/11/ 2014.


O conto, tal como diria Edgar Allan Poe, precisa trazer consigo algo cortante, provocar no leitor uma excitação capaz de nos tirar o fôlego, sair do eixo... eis o que encontraremos nas narrativas homoeróticas de Marcus Vinicius Rodrigues. Rodrigues mostra-nos a tensão narrativa composta pelo jogo entre libido/vida versus morte/agressividade. Nessa tensão encontraremos a dualidade do imaginário que constitui sentimentos opostos, mas que coexistem em meio a narrativas densas, transgressoras e, por fim, trágicas. Isto, pois, é o que submerge em “A tarde de um fauno”, cujo mistério que inicia a narrativa conduz a chave do conto. O autor parece brincar desde ao articular entre o profano e o sagrado, ao nominar a personagem tal como uma figura bíblica, ou quando descreve seu Davi revoando lugares altos e belos tal como vivesse em contos de fadas: um anseio quase infantil, articulado e transformado, transgressoramente, a partir de um olhar de voyeur sobre um Fauno possível graças ao poder sugestivo de um imaginário fértil. As personagens rodrigueanas nos conduzem ao encontro de figuras que nos tiram do lugar de conforto, dão vida aos nossos anseios mais íntimos, articulam percepções nas quais jamais ousamos sequer imaginar, nos possibilitam passear por caminhos desertos, mas que embebidos de incertezas, desejos, tesão... nos imprimem uma necessidade infinda de saborear cada página com uma doce e intensa vontade, para quem sabe descobrir os mistérios de suas estórias e o que poderíamos encontrar por trás delas.

*Mariana Barbosa é Mestra em Estudos Literários pela Universidade Estadual de Feira de Santana.

















quarta-feira, 1 de outubro de 2014

O SORRISO DE LAERTE (Alex Smões)



porque quando nos sonhos parecia
tudo bem melhor
não era
sonho.

parecia
bem melhor
que a vida
e não valia a pena
que escrevia e desenhava
à pena
a duras penas
não valia

a vida sem sentido
dá avisos
há vida pulsando
o tempo urge
e às vezes dói lembrar

então seguir em frente
desenhando  esquinas
com a ponta do salto o pivô
sabendo tudo muito sério
inclusive o sorriso estampado
e a lisura do vestido.

a moda agora é sóbria,
nós não podemos ser.

é uma questão política:
o contraste é estratégia
de quem milita a alegria.





O VESTIDO DE LAERTE


Dedicado a Laerte Coutinho


Um corpo que se mude, ainda que tarde,
de umas calças surradas para o vestido,
há muito ele sabe: vestir é impreciso.

E se esse corpo, por função, domina o risco
e tem firme a mão para o traço fino,
sua mudança de panos faz mais alarde.

Ele se veste e revela-se nova casa
e então se refaz um novo destino:
desenhar desejos mais despidos.

Um corpo que se trace nova forma,
um charme assim característico,
mais que transformar-se, faz arte.

Marcus Vinícius Rodrigues


(Poema feito a pedido do poeta Alex Simões)