Há momentos da vida que ficam para sempre na memória. São vivos e intensos ali no tempo real dos acontecimentos; ganham mais cor logo a seguir, na primeira vez que são contados. Depois, quando guardados no escaninho da alma, vão esgarçando como tecido que se desfaz. É apenas o carinho de lembrar que lhes vem cerzir de novo. É na memória vaga, distante, que ganham sua forma definitiva, suas cores firmes. Tenho uma lembrança assim.
É uma lembrança verde brilhante, mais brilhante ainda por surgir em meio à sombra de uma floresta.
Morei no Amazonas quando criança. Tinha entre 10 e 11 anos quando estivemos em Humaitá, uma cidade pequena no encontro da Transamazônica e o Rio Madeira. Morávamos eu e meus pais. Meus irmãos estudavam em Manaus, no Colégio Militar. Sozinho, eu tinha em meu pai a presença mais constante para brincar. Era ele quem fazia para mim brinquedos de madeira, como uma jangada que guardei por muitos anos.
Um dia, ele resolveu me levar para caçar. De verdade, revendo hoje a história, creio que ele nem pretendia caçar mesmo. Era apenas uma aventura nossa juntos. Um passatempo sem objetivo sério. Ele caçava, sim, com os amigos, quando ficava dias fora de casa. Nossa aventura, porém, deveria ser mais leve. Atravessamos o rio Madeira em uma balsa, a outra margem misteriosa que eu via da praça da cidade à noite. Ou melhor, não via, pois para aquele lado não havia cidade. Uma ou outra casa mal iluminada por algum candeeiro. Nestas minhas noites olhando para o rio escuro, fantasiava ali o fim do mundo. As estrelas do céu — nunca mais vi tantas — se dobravam no espelho da água escura e ganhavam a companhia daquelas estrelas falsas dos candeeiros. Eu imaginava um abismo para o espaço sideral, o vácuo por onde passava um laboratório espacial, um satélite que ia cair a qualquer momento: o Skylab.
Daquele lado do rio, ficava a Lagoa do Paraíso. Talvez apenas um igarapé mais aberto, sem tantas árvores a lhe cobrir a lâmina d´água. Íamos muito para lá. Meu pai conhecia uma família que morava ali na beira, numa casa alta, preparada para sobreviver às cheias. Não foi bem para lá que fomos nessa viagem. Paramos antes, à beira da estrada, e entramos na mata para a tal caçada. Íamos sem nada além de uma espingarda na mão de meu pai. Entrar na floresta é sempre uma experiência excepcional. Lá dentro é noite. Embaixo das árvores fechadas, algumas com raízes mais altas que meu pai, e pisando apenas em folhas secas, uma camada tal grossa que nem se sente o chão, ali nem se pode pensar que é ainda terra. Tudo é mata, água e mosquitos. Tudo demasiadamente vivo.
E o que é vivo é úmido.
Para mim, aquele era o sentido da expressão ¨boca da Mata¨, que eu ouvia falar então. Só depois notei que em vários lugares se usa a expressão, tão comum como chamar uma cachoeira de véu de noiva.
Distraídos, nós nos perdemos. Ficamos algum tempo rodando sem saber onde ficava a estrada. Muito tempo, pareceu. Foi nessa procura que nos deparamos com um laguinho verde. Ali no meio das sombras daquelas árvores que cobriam tudo apareceu o inusitado de uma clareira sobre um lago redondo, apenas um pouco maior que a sala de minha casa de vila militar. Era inusitado porque tão pouco espaço podia estar também coberto, como tudo. No entanto, aquilo se abria para o céu e o sol entrava inteiro. O lago estava coberto por uma vegetação flutuante que nem sei dizer o que era. Não eram as tais vitórias-régias que já tinha visto tanto e que não me cansava de desenhar nos cadernos da escola. Eram apenas umas folhinhas miúdas e muito verdes e muito brilhantes e muito inesquecíveis.
Dali a algum tempo, ouvimos a estrada e seus carros. Achamo-nos, enfim.
Nunca esqueci dessa minha aventura de criança.
Outro dia, porém, tive notícias do mesmo momento, por um ponto de vista que até agora não conhecia. Foi meu pai quem se lembrou do episódio e, relembrando comigo, perguntou: você não ficou com medo? Eu respondi, muito natural, que não. Ele estranhou. Mas como? Eu fiquei com medo. Então, ocorreu-me algo, tão rápido que nem percebi. Só depois, ouvindo minha voz, surpreendeu-me a frase: é que o senhor estava sozinho com uma criança. Eu estava com meu pai!
2 comentários:
Estava com saudade de sua presença! Que texto lindo! Quem sabe, sabe!
Um abraço.
Q frase! Está aqui dentro de mim, dando vontade de chorar. Não sei se vc sabe, sou edipiana, perdi o meu pai faz pouco e tudo que tem pai, no sentido que a frase traz, acaba me tocando muito.
Eu com ele (com meu pai) não tinha medo de coisa alguma. Era o meu deus.
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