
Depois
do baile verde
"Quando bateu a porta atrás de si,
rolaram pela escada
algumas lantejoulas
verdes na mesma direção,
como se quisessem alcançá-la."
Lygia Fagundes Telles
Os dedos percorreram o tecido verde
jogado sobre a cômoda, numa lenta observação. A larga camisa era feita desse
tecido sintético, imitando a leveza de uma seda, porém mais resistente. Os tons
de verde brilhantes sobre um fundo multicor, as várias cores, tão diferentes e
iguais, fazendo uma trama confusa. Como marca definida, apenas o desenho de uma
pata de lagarto no ombro. Aqui, o brilho do tecido ficava inteiramente
ofuscante, como se a pata fosse bordada de lantejoulas verdes. Tatisa acariciou
aquele desenho com seus dedos brancos, as unhas curtas e sem vaidade, dedos de
uma velha. Ela procurava o tato familiar das lantejoulas. Esperava nos dedos a
confirmação daquele brilho tão conhecido. Nada. Apenas o toque suave de seda
falsa. Mesmo o brilho, ela sabia, era falso. Com certeza não chegaria aos pés
do brilho de uma lantejoula. Aquelas faíscas que via sair do verde do tecido
eram efeitos de sua vista embaçada. Uma catarata se formava em seu olho. É
preciso esperar, disse o médico de cabelos louros, tem de amadurecer primeiro.
Era preciso que a cortina descesse completamente para só então descerrá-la.
Descer ao fundo do poço, ela chegou a dizer. O médico sorriu seu sorriso de
jovem. Mas ele é tão jovem, disse Tatisa à sua filha. Mamãe! Ela agarrou seu
braço numa reprimenda discreta. Ele é o melhor nessa área, ela completou entre
os dentes. Tatisa queria dizer que conheceu muitos médicos em sua vida, todos
iguais. Eles olham pra gente um instante, perguntam se tomamos algum remédio,
perguntam se temos alergia a alguma coisa e mandam a gente pra casa.
Amadurecer? Eu já estou madura demais, doutor, caindo do pé, ela quis dizer
também, mas se calou. O pudor de falar de sua velhice com aquele jovem de pele
tão fresca. Calou-se na obediência que os velhos aprendem, engoliu a frase
durante a consulta inteira e mesmo depois, enquanto atravessava a cidade
naquele dia extraordinariamente quente, o calor exorbitava como que para
confirmar a chegada do verão. Chegou à casa exausta. Tantos médicos nos últimos
dias, tantos exames, as suspeitas de um mal invisível. Desabou no sofá e as
palavras transbordaram. Não viveria para ver a catarata amadurecer. Ia morrer
quase cega. Ora, mamãe, a senhora ainda vai enterrar todos nós. Vai ver quando
os exames chegarem, a saúde de ferro. A filha falava animada, sem permitir uma
palavra em
contrário. Tatisa calou-se mais uma vez. Os exames.
O neto lhe tirou das mãos o tecido
verde. Já era um rapagão o menino. Rodou pela sala com o pedaço de pano.
Enrolou-o de qualquer jeito, como se fosse arremessar num cesto de roupas sujas
e meteu no fundo da mala, enfiando a mão por entre as roupas que já estavam lá,
o gesto vigoroso.
— Abadá, Vó. O nome disso é abadá. Há
muito tempo que na existe mais mortalha nem fantasia. Nesse calor quem vai usar
fantasia?
Ele respondia a uma pergunta lançada à
neta. Cadê a fantasia de carnaval? A menina magra ficou ainda mais fina com a
pergunta. Era anêmica de vontade, uma sílfide pálida. Estava ajoelhada perto de
sua mala, dobrando pedacinhos de pano cor-de-rosa. Blusinhas. Arrumava a viagem
como uma folha que se deixa levar pelo vento, sem querer ir, sem querer ficar,
os pais já acostumados com aquela inapetência pela vida. A Avó não se
conformava. Gostava de perguntar o que a neta queria, o que pensava das coisas.
A resposta era quase sempre um dar de ombros. Quer dizer, de ombro, pois ela só
levantava levemente o ombro direito e estendia os lábios uns poucos milímetros
para frente, num muxoxo. Era nessa hora que os olhos caíam em diagonal para o
ombro, como se vigiassem a execução do gesto.
A filha de Tatisa também estava às
voltas com as malas. Arrumava a dela e a do marido. O genro tinha uma última
reunião antes da viagem, a filha dizia a todo instante. Ele chegará a tempo,
ela dizia com voz firme, afastando para longe a suspeita que nasceu junto com
as novas reuniões. Tantas ultimamente. Foi com essa voz firme que ela anunciou
a viagem. Vamos para a Bahia, mãe, quinze dias, praia descanso e, depois, o
carnaval. O marido não teve argumentos para ser contra, tentou desculpas
fracas, vagas, até ceder vencido. A neta sequer se manifestou. Só o neto ficou
animado, queria ir atrás do Trio Elétrico, como naquela música: atrás do Trio Elétrico só não vai quem já
morreu ..., cantarolou Tatisa, lembrando da invasão dos baianos na
televisão, As roupas exuberantes, a música tão nova e vigorosa. O carnaval da
Bahia devia ser assim. Foi o neto quem lhe esclareceu tudo. Os cantores eram
outros. O bloco carnavalesco da moda chamava-se Camaleão — o lagarto da camisa,
ou do abadá, o que quer que seja isso. Era um carnaval para jovens. Não tinha
lugar para velhos. O convite da filha demorou para vir. Antes ela ouviu o neto
falar da exaltação da festa, os números de trios, de blocos, de pessoas, mais
de um milhão, talvez dois. Muita confusão. Não, os baianos que Tatisa conhecia
não cantavam nas ruas, nem os velhos nem os novos baianos. Só os novíssimos.
Todos os anos, surgiam outros mais novíssimos ainda. Apenas quando o quadro se
desenhou totalmente é que veio o convite da filha. Tatisa sabia que não era uma
viagem para velhos. Só iria atrapalhar. Que é isso, mamãe, a senhora nunca
atrapalha, a filha lançou a gentileza. Tatisa aceitou o gesto e manteve seu
papel na farsa. Continuou recusando. O genro também insistiu para que ela fosse
e o gesto pareceu-lhe até sincero! Ela não soube como reagir. Ele chegava de uma
reunião e de repente a companhia da sogra ganhou tanta importância!
— Deve ser nome africano, o neto
continuava sua explicação sobre o tal abadá. Só não sei o que significa. É
feita assim: larga. Se quiser, a gente pode cortar, diminuir.
Tatisa alisou sobre a cômoda o paninho
de crochê, feito com minúsculos pontos, ponto baixíssimo. Empurrou mais para o
fundo o envelope que estava embaixo do pano. Aproveitou para empurrar para o
fundo as lembranças de um outro carnaval. Aquela roupa verde, tão brilhante, lhe
lembrou um outro tempo. Quase podia repetir o gesto de molhar os dedos no pote
de cola, enfiar nas lantejoulas e espalhá-las em sua roupa verde. A fantasia
estava sendo improvisada em cima da hora. Tão mais difícil conseguir um pouco
de brilho naqueles tempos. O baile seria temático. Um baile verde. Lu, a
empregada, ajudava na montagem apressada. O carnaval rodeava a casa com suas
músicas alegres e inocentes, tão perto. Por que, então, o baile? Pensou Tatisa.
Logo lhe veio na memória o Pierrô verde. Precisava ir a seu encontro, o
namorado. Ela já tinha a certeza. Era um namorico apenas, mas ela já tinha a
certeza. Ela via a filha e sua força e lembrava daquele Pierrô. Tão firme no
convite. Vamos ao baile verde, está decidido. Ela quis falar do pai doente, mas
não teve coragem. Nem quando rodopiava no salão pôde dizer: o pai. No entanto,
a frase da empregada se lhe cravara na cabeça: ele não passa dessa noite. As
previsões da Lu. Ela já errara tanto! Era como um corvo voando em torno da
doença do pai, sempre prevendo sua morte. Mas já errara tanto! Era um corvo
equivocado. E o pai não morreria no dia do baile. Tão importante o baile, ele
sabia. Não foi isso que a empregada tinha dito? Ele sabia que o baile era
importante pra ela. Estava se fazendo de forte, dizia Lu em sua cabeça enquanto
rodopiava nos braços de seu futuro marido. Eles iam se casar e ter essa filha
decidida que cuidaria da mãe velha e viúva. A vida assim resumida. Tatisa não
pensava que os anos todos de seu futuro poderiam ser resumidos assim num
passado tão curto. Ela não sabia disso e, naquela hora, afastava os agouros da
empregada. Hoje não papai. E ria para encobrir com a risada a imagem da porta
do quarto fechado, onde o pai...
— Mamãe!
Tatisa é acordada mais uma vez de suas
lembranças.
— Vamos ter de sair antes da hora.
Tatisa já ouviu pela metade. Demorou a
entender o que a filha dizia. O genro estava atrasado. Iam todos direto para o
aeroporto. Ele podia seguir direto. Tatisa quis aconselhar. Não seria melhor
ligar pra ele, lembrar da viagem uma reunião não demora tanto assim? E essa
ausência constante? Tatisa lembrava de seu próprio pai. Só adulta percebeu que,
quando criança, havia umas ausências diferentes. Havia um silêncio negro no
rosto da mãe. Longos períodos de silêncio. O pai oprimido por aquela voz que
não era dita. A mãe engolia as palavras e junto com elas mastigava as entranhas
do pai. Um doloroso silêncio para os dois. Tatisa também teve seus dias de
silêncio com seu Pierrô verde. A ela parecia um ritual inevitável. Os homens
aprendiam as pequenas ausências, os pequenos atrasos. Eram pequenos tremores na
vida. Às mulheres cabia silenciar e esperar. O mundo se recompunha então.
Tatisa tinha passado por isso. Não era possível desviar desse caminho. Nada
podia ser alterado. As pequenas ausências, todas, podiam ser logicamente
explicadas. Tudo se encaixava milimetricamente. Não podia ser diferente.
Imaginar que algo acontecera era impossível. Por isso o silêncio. Uma palavra
errada poderia desmontar aquele equilíbrio delicado. Tatisa aprendera aquele
jogo. Toda a vida de uma mulher se paralisava à espera do marido. Ela se
arrumava, punha um belo jantar na mesa e esperava. Sua vida ficava em suspenso
até que a chave girasse na porta. Ele então entraria e acenderia a luz e tudo
estaria claro.
A filha de Tatisa não parecia entender
por completo essa lei. Algo do silêncio ela aprendera, mas não podia esperar.
Ela seguia em
frente. Carregava o que pudesse levar, os que fossem fortes
para a jornada.
— Minha filha, não é melhor esperar?
— Mamãe, Mamãe. Ele sabe os horários.
Saberá chegar lá.
— Não é melhor irem todos juntos?
A filha olhou séria. Não, não. Ela estava
disposta a seguir com seu plano. Ir a Bahia, ao carnaval. O marido que fosse
direto para o aeroporto. Se perdesse o vôo, pegaria outro. Se não fosse, que
comprasse roupas, pois quase nada ficara em casa. Ia ter de usar paletós todo dia. As
reuniões, tantas. Aprendesse a administrar as reuniões, dizia a filha. Havia
uma tensão naquela família, Tatisa sentia em sua carne. Admirava a filha por
sua mão firme. Era ela quem controlava o filho cada vez mais rebelde, tão
perigosamente próximo do gesto agressivo. E essa menina tão diáfana, o que
fazer com ela. Tão ausente, tão anêmica, sem apetite para vontades, sem vida
nas veias. A filha tinha mão firme com ambos. Com uma refreava o filho e seus
impulsos, com a outra empurrava a filha adiante. Não se preocupava
verdadeiramente com o que ia dentro de seus corações, apenas seguia em frente,
fazendo sua família caminhar nos trilhos, como um trem, uma estação por vez,
até vir o final do caminho de ferro, ou até o abismo da ponte interrompida,
todo o comboio lançando-se no vazio. Era assim que ela pensava que devia
conduzir sua família, todos juntos, a família inteira, ainda que cada parte fosse
um amontoado de cacos de vidro. As almas se destroçavam diante daquela força
aglutinadora que era a filha. Iam todos para a Bahia. O carnaval. O bloco
verde. Tatisa ficaria. O último vagão, já velho demais, ia se desprendendo do
comboio. Ela já fora assim, uma locomotiva seguindo em frente, os vagões
desprendendo-se no caminho. O pai. A porta fechada no corredor escuro, as
marchas de carnaval lá fora. Uma verdadeira locomotiva naquela noite verde.
Umas poucas lantejoulas caídas no chão tentaram acompanhá-la. Mas para onde,
Tatisa?
— Não chegaram os exames? Pensei ter
visto um envelope no meio da correspondência. Mamãe?
Tatisa gesticulou um sei lá com os
ombros, um leve muxoxo nos lábios. A neta teve uma professora, isso era certo.
Só não aprendera a ter o segredo por trás do gesto evasivo. Seu gesto era só
isso, uma evasão, um esvaziamento. Tatisa sabia o segredo. Esse, o seu grande
aprendizado na vida.
— Mamãe!? A clínica não ficou de
mandar?
— Ficou sim. Não chegou?
— Eu pensei ter visto, mas acho que me
enganei.
— Procure, querida, pode estar por aí.
Tatisa fez a sugestão como uma
provocação. Conhecia bem a filha.
— Meu bem, não está em cima da cômoda?
Muita coisa estava em cima da cômoda,
sempre tão atulhada e objetos. E agora,
naquela arrumação de viagem? A filha vasculhou com pressa os objetos e
nada achou.
— Deixe que eu procuro depois,
filhinha, vá fazer sua viagem, descansar.
— Mamãe, é importante, a senhora sabe.
— Minha saúde está ótima!
Os netos apenas observavam aquele
impasse entre mãe e filha. Havia uma luta se desenrolando diante de seus olhos.
Eles não entediam verdadeiramente, apenas sentiam o embate, como um surdo
percebe as vibrações do som em seu corpo. Eles sentiam e reagiam cada um a seu
modo. A menina afinou-se ainda mais, foi ficando delgada. Mais um pouco e
sumiria por entre as malas. O garoto apenas murmurava palavras inaudíveis. Ele
represava uma torrente de violência que poderia explodir a qualquer momento.
Era quem mais precisava da Bahia. O que aconteceria com esse menino solto numa
cidade como aquela? Tatisa tinha medo de imaginar. O que quer que fosse, a
filha certamente teria força para segurar tudo. Ela sempre teve. Agora mesmo
era capaz de vencer uma avalanche de impossibilidades contra seus planos. E
fazia tudo com um simples olhar. Apenas com ele ela era capaz de afastar todos
os problemas. O marido ausente em suas reuniões voltaria a tempo? Quanto tempo
poderia conter o filho explosivo? E aquela menina se adelgaçando através da
adolescência, ela chegaria a ser adulta? Tudo parecia desmoronar em sua volta.
Ela, no entanto, inventava forças novas a cada novo problema. Viajar. O
carnaval. Ela ia se divertir e seguir em frente. Nunca foi
tão chegada ao carnaval. Algumas festas em criança, as farras de adolescente,
apenas o que era esperado de uma moça. E, agora, aquela viagem. Ela corria como
uma corsa que sente cheiro de fogo na floresta. Corria para se salvar. Não do
marido que escapava de seus braços, não dos filhos que escapavam de seu útero.
Tatisa sabia do que ela fugia e o quanto de força ela usava para fazer isso.
Ela sabia que a filha seria capaz de vencer tudo que lhe acontecesse, todas as
tragédias. Mesmo uma catástrofe natural ela venceria com os filhos nos braços.
Apenas uma força poderia destruí-la. Tatisa sabia. Em meio ao embate, falou
mais alto a natureza. Tatisa tocou o braço da filha e disse:
— Eu estou bem, querida. Os exames
ainda devem estar chegando. Amanhã, depois. A qualquer momento eles chegarão.
Não adianta você se preocupar agora.
A filha pôs uma expressão preocupada
no rosto.
— Mamãe, você vai me prometer que vai
me ligar assim que os exames chegarem, viu. Aliás, assim que eu me instalar no
hotel eu vou ligar pra senhora.
Prometeu. Adiantou-se nas despedidas.
Pra que prolongar mais aquela agonia? Já não havia dúvidas demais no ar? O
genro não dera notícias. Ele iria ao aeroporto? A filha aceitou aquela
gentileza da mãe. Eles começaram os abraços, todo um ritual de separação.
Recomendações de ambos os lados. O afeto demonstrado como que na obediência de
um protocolo de Estado. Tatisa via a filha partir em sua fuga, quase livre. E
então, quando tudo parecia resolvido, a neta deixa escorrer da boca uma voz
fina, quase um fiapo.
— Vovó, hoje de manhã não chegou um
envelope branco com uma faixa azul e cinza? Não é esse o envelope da Clínica?
A reação da filha foi imediata. Queria
ver onde estava, queria ver se eram os exames. Ela já se dispunha a trazer as
malas para dentro, quando Tatisa atalhou.
— Não, minha filha, aquele é o
envelope da catarata. Eu estava olhando ele esta manhã. Você sabe que eu não me
conformo. A ciência tão avançada e eu tendo de esperar isso amadurecer. Não me
conformo de ficar cega, mesmo que seja só por um tempo. Uma coisa tão simples.
Não entendo.
— Mamãe, antes do fim do ano a senhora
vai estar ótima, enxergando tudo.
A filha ria tranqüila, inteiramente
compreensiva. Podia ser generosa agora, já estava em pleno vôo para a
liberdade. Repetiram as despedidas, um resumo rápido.
A
porta se fechou e Tatisa finalmente ficou só. Foi sentar-se no sofá. O envelope
ardia embaixo do paninho de crochê. Não precisava abri-lo para saber o
veredicto. Lá não estaria a data final, apenas a ameaça. Por que lê-lo, então?
Lembrou de como ele chegou pela manhã, a empregada empilhando todas as cartas na
cômoda. Lembrou de como rondou em volta do móvel a manhã inteira, como se já
beirasse a vida pelo lado de fora. O pequeno retângulo branco com uma faixa
azul e cinza. Bastaria abri-lo e todos os planos da filha estariam desfeitos.
No meio do dia, decidiu que ele deveria desaparecer. Precisava escondê-lo.
Aproveitou um momento de distração da família e foi à cômoda. As cartas estavam
mexidas. O envelope, displicentemente enfiado embaixo do paninho. Ela
compreendeu a mensagem. Ele estava fechado. A filha o empurrara para baixo,
como se fosse uma poeira que se deve esconder embaixo de um tapete, como uma
porta que não se deve abrir. Quer dar uma
espiada, Tatisa? Ela ouviu a voz de Lu ecoando do passado. Aquela porta não
foi aberta naquela noite de carnaval, o baile verde esperando. Tatisa jamais
abriu aquela porta. Nunca mais. Hoje, apenas, toda uma vida depois, diante do
envelope fatal, é que ela teve coragem de encarar o que lhe reservara o destino
naquele dia. Sentada no sofá, fechou os olhos embaçados. Ela estava de novo no
topo da escada de sua antiga casa. Apenas o barulho do relógio quebrava o
silêncio. A porta estava fechada. Tatisa aproximou-se com cautela. Investigou
os ruídos de dentro. Não pode distinguir nada. Girou suavemente a maçaneta
antiga. Um retângulo negro foi se expandindo. Os olhos de Tatisa, agora, podiam
ver tudo. O mundo estava incrivelmente claro. Lá dentro cintilavam pequenas
estrelas. Algumas lantejoulas pareciam
convidá-la a entrar. Ela se sentiu inexplicavelmente calma. E então, depois de
tanto tempo, tantos anos fugindo, ela entrou.