domingo, 16 de dezembro de 2012

Depois do baile verde




Depois do baile verde


"Quando bateu a porta atrás de si, 
rolaram pela escada algumas lantejoulas
verdes na mesma direção,
 como se quisessem alcançá-la."
Lygia Fagundes Telles

Os dedos percorreram o tecido verde jogado sobre a cômoda, numa lenta observação. A larga camisa era feita desse tecido sintético, imitando a leveza de uma seda, porém mais resistente. Os tons de verde brilhantes sobre um fundo multicor, as várias cores, tão diferentes e iguais, fazendo uma trama confusa. Como marca definida, apenas o desenho de uma pata de lagarto no ombro. Aqui, o brilho do tecido ficava inteiramente ofuscante, como se a pata fosse bordada de lantejoulas verdes. Tatisa acariciou aquele desenho com seus dedos brancos, as unhas curtas e sem vaidade, dedos de uma velha. Ela procurava o tato familiar das lantejoulas. Esperava nos dedos a confirmação daquele brilho tão conhecido. Nada. Apenas o toque suave de seda falsa. Mesmo o brilho, ela sabia, era falso. Com certeza não chegaria aos pés do brilho de uma lantejoula. Aquelas faíscas que via sair do verde do tecido eram efeitos de sua vista embaçada. Uma catarata se formava em seu olho. É preciso esperar, disse o médico de cabelos louros, tem de amadurecer primeiro. Era preciso que a cortina descesse completamente para só então descerrá-la. Descer ao fundo do poço, ela chegou a dizer. O médico sorriu seu sorriso de jovem. Mas ele é tão jovem, disse Tatisa à sua filha. Mamãe! Ela agarrou seu braço numa reprimenda discreta. Ele é o melhor nessa área, ela completou entre os dentes. Tatisa queria dizer que conheceu muitos médicos em sua vida, todos iguais. Eles olham pra gente um instante, perguntam se tomamos algum remédio, perguntam se temos alergia a alguma coisa e mandam a gente pra casa. Amadurecer? Eu já estou madura demais, doutor, caindo do pé, ela quis dizer também, mas se calou. O pudor de falar de sua velhice com aquele jovem de pele tão fresca. Calou-se na obediência que os velhos aprendem, engoliu a frase durante a consulta inteira e mesmo depois, enquanto atravessava a cidade naquele dia extraordinariamente quente, o calor exorbitava como que para confirmar a chegada do verão. Chegou à casa exausta. Tantos médicos nos últimos dias, tantos exames, as suspeitas de um mal invisível. Desabou no sofá e as palavras transbordaram. Não viveria para ver a catarata amadurecer. Ia morrer quase cega. Ora, mamãe, a senhora ainda vai enterrar todos nós. Vai ver quando os exames chegarem, a saúde de ferro. A filha falava animada, sem permitir uma palavra em contrário. Tatisa calou-se mais uma vez. Os exames.
O neto lhe tirou das mãos o tecido verde. Já era um rapagão o menino. Rodou pela sala com o pedaço de pano. Enrolou-o de qualquer jeito, como se fosse arremessar num cesto de roupas sujas e meteu no fundo da mala, enfiando a mão por entre as roupas que já estavam lá, o gesto vigoroso.
— Abadá, Vó. O nome disso é abadá. Há muito tempo que na existe mais mortalha nem fantasia. Nesse calor quem vai usar fantasia?
Ele respondia a uma pergunta lançada à neta. Cadê a fantasia de carnaval? A menina magra ficou ainda mais fina com a pergunta. Era anêmica de vontade, uma sílfide pálida. Estava ajoelhada perto de sua mala, dobrando pedacinhos de pano cor-de-rosa. Blusinhas. Arrumava a viagem como uma folha que se deixa levar pelo vento, sem querer ir, sem querer ficar, os pais já acostumados com aquela inapetência pela vida. A Avó não se conformava. Gostava de perguntar o que a neta queria, o que pensava das coisas. A resposta era quase sempre um dar de ombros. Quer dizer, de ombro, pois ela só levantava levemente o ombro direito e estendia os lábios uns poucos milímetros para frente, num muxoxo. Era nessa hora que os olhos caíam em diagonal para o ombro, como se vigiassem a execução do gesto.
A filha de Tatisa também estava às voltas com as malas. Arrumava a dela e a do marido. O genro tinha uma última reunião antes da viagem, a filha dizia a todo instante. Ele chegará a tempo, ela dizia com voz firme, afastando para longe a suspeita que nasceu junto com as novas reuniões. Tantas ultimamente. Foi com essa voz firme que ela anunciou a viagem. Vamos para a Bahia, mãe, quinze dias, praia descanso e, depois, o carnaval. O marido não teve argumentos para ser contra, tentou desculpas fracas, vagas, até ceder vencido. A neta sequer se manifestou. Só o neto ficou animado, queria ir atrás do Trio Elétrico, como naquela música: atrás do Trio Elétrico só não vai quem já morreu ..., cantarolou Tatisa, lembrando da invasão dos baianos na televisão, As roupas exuberantes, a música tão nova e vigorosa. O carnaval da Bahia devia ser assim. Foi o neto quem lhe esclareceu tudo. Os cantores eram outros. O bloco carnavalesco da moda chamava-se Camaleão — o lagarto da camisa, ou do abadá, o que quer que seja isso. Era um carnaval para jovens. Não tinha lugar para velhos. O convite da filha demorou para vir. Antes ela ouviu o neto falar da exaltação da festa, os números de trios, de blocos, de pessoas, mais de um milhão, talvez dois. Muita confusão. Não, os baianos que Tatisa conhecia não cantavam nas ruas, nem os velhos nem os novos baianos. Só os novíssimos. Todos os anos, surgiam outros mais novíssimos ainda. Apenas quando o quadro se desenhou totalmente é que veio o convite da filha. Tatisa sabia que não era uma viagem para velhos. Só iria atrapalhar. Que é isso, mamãe, a senhora nunca atrapalha, a filha lançou a gentileza. Tatisa aceitou o gesto e manteve seu papel na farsa. Continuou recusando. O genro também insistiu para que ela fosse e o gesto pareceu-lhe até sincero! Ela não soube como reagir. Ele chegava de uma reunião e de repente a companhia da sogra ganhou tanta importância!
— Deve ser nome africano, o neto continuava sua explicação sobre o tal abadá. Só não sei o que significa. É feita assim: larga. Se quiser, a gente pode cortar, diminuir.
Tatisa alisou sobre a cômoda o paninho de crochê, feito com minúsculos pontos, ponto baixíssimo. Empurrou mais para o fundo o envelope que estava embaixo do pano. Aproveitou para empurrar para o fundo as lembranças de um outro carnaval. Aquela roupa verde, tão brilhante, lhe lembrou um outro tempo. Quase podia repetir o gesto de molhar os dedos no pote de cola, enfiar nas lantejoulas e espalhá-las em sua roupa verde. A fantasia estava sendo improvisada em cima da hora. Tão mais difícil conseguir um pouco de brilho naqueles tempos. O baile seria temático. Um baile verde. Lu, a empregada, ajudava na montagem apressada. O carnaval rodeava a casa com suas músicas alegres e inocentes, tão perto. Por que, então, o baile? Pensou Tatisa. Logo lhe veio na memória o Pierrô verde. Precisava ir a seu encontro, o namorado. Ela já tinha a certeza. Era um namorico apenas, mas ela já tinha a certeza. Ela via a filha e sua força e lembrava daquele Pierrô. Tão firme no convite. Vamos ao baile verde, está decidido. Ela quis falar do pai doente, mas não teve coragem. Nem quando rodopiava no salão pôde dizer: o pai. No entanto, a frase da empregada se lhe cravara na cabeça: ele não passa dessa noite. As previsões da Lu. Ela já errara tanto! Era como um corvo voando em torno da doença do pai, sempre prevendo sua morte. Mas já errara tanto! Era um corvo equivocado. E o pai não morreria no dia do baile. Tão importante o baile, ele sabia. Não foi isso que a empregada tinha dito? Ele sabia que o baile era importante pra ela. Estava se fazendo de forte, dizia Lu em sua cabeça enquanto rodopiava nos braços de seu futuro marido. Eles iam se casar e ter essa filha decidida que cuidaria da mãe velha e viúva. A vida assim resumida. Tatisa não pensava que os anos todos de seu futuro poderiam ser resumidos assim num passado tão curto. Ela não sabia disso e, naquela hora, afastava os agouros da empregada. Hoje não papai. E ria para encobrir com a risada a imagem da porta do quarto fechado, onde o pai...
— Mamãe!
Tatisa é acordada mais uma vez de suas lembranças.
— Vamos ter de sair antes da hora.
Tatisa já ouviu pela metade. Demorou a entender o que a filha dizia. O genro estava atrasado. Iam todos direto para o aeroporto. Ele podia seguir direto. Tatisa quis aconselhar. Não seria melhor ligar pra ele, lembrar da viagem uma reunião não demora tanto assim? E essa ausência constante? Tatisa lembrava de seu próprio pai. Só adulta percebeu que, quando criança, havia umas ausências diferentes. Havia um silêncio negro no rosto da mãe. Longos períodos de silêncio. O pai oprimido por aquela voz que não era dita. A mãe engolia as palavras e junto com elas mastigava as entranhas do pai. Um doloroso silêncio para os dois. Tatisa também teve seus dias de silêncio com seu Pierrô verde. A ela parecia um ritual inevitável. Os homens aprendiam as pequenas ausências, os pequenos atrasos. Eram pequenos tremores na vida. Às mulheres cabia silenciar e esperar. O mundo se recompunha então. Tatisa tinha passado por isso. Não era possível desviar desse caminho. Nada podia ser alterado. As pequenas ausências, todas, podiam ser logicamente explicadas. Tudo se encaixava milimetricamente. Não podia ser diferente. Imaginar que algo acontecera era impossível. Por isso o silêncio. Uma palavra errada poderia desmontar aquele equilíbrio delicado. Tatisa aprendera aquele jogo. Toda a vida de uma mulher se paralisava à espera do marido. Ela se arrumava, punha um belo jantar na mesa e esperava. Sua vida ficava em suspenso até que a chave girasse na porta. Ele então entraria e acenderia a luz e tudo estaria claro.
A filha de Tatisa não parecia entender por completo essa lei. Algo do silêncio ela aprendera, mas não podia esperar. Ela seguia em frente. Carregava o que pudesse levar, os que fossem fortes para a jornada.
— Minha filha, não é melhor esperar?
— Mamãe, Mamãe. Ele sabe os horários. Saberá chegar lá.
— Não é melhor irem todos juntos?
 A filha olhou séria. Não, não. Ela estava disposta a seguir com seu plano. Ir a Bahia, ao carnaval. O marido que fosse direto para o aeroporto. Se perdesse o vôo, pegaria outro. Se não fosse, que comprasse roupas, pois quase nada ficara em casa. Ia ter de usar paletós todo dia. As reuniões, tantas. Aprendesse a administrar as reuniões, dizia a filha. Havia uma tensão naquela família, Tatisa sentia em sua carne. Admirava a filha por sua mão firme. Era ela quem controlava o filho cada vez mais rebelde, tão perigosamente próximo do gesto agressivo. E essa menina tão diáfana, o que fazer com ela. Tão ausente, tão anêmica, sem apetite para vontades, sem vida nas veias. A filha tinha mão firme com ambos. Com uma refreava o filho e seus impulsos, com a outra empurrava a filha adiante. Não se preocupava verdadeiramente com o que ia dentro de seus corações, apenas seguia em frente, fazendo sua família caminhar nos trilhos, como um trem, uma estação por vez, até vir o final do caminho de ferro, ou até o abismo da ponte interrompida, todo o comboio lançando-se no vazio. Era assim que ela pensava que devia conduzir sua família, todos juntos, a família inteira, ainda que cada parte fosse um amontoado de cacos de vidro. As almas se destroçavam diante daquela força aglutinadora que era a filha. Iam todos para a Bahia. O carnaval. O bloco verde. Tatisa ficaria. O último vagão, já velho demais, ia se desprendendo do comboio. Ela já fora assim, uma locomotiva seguindo em frente, os vagões desprendendo-se no caminho. O pai. A porta fechada no corredor escuro, as marchas de carnaval lá fora. Uma verdadeira locomotiva naquela noite verde. Umas poucas lantejoulas caídas no chão tentaram acompanhá-la. Mas para onde, Tatisa?
— Não chegaram os exames? Pensei ter visto um envelope no meio da correspondência. Mamãe?
Tatisa gesticulou um sei lá com os ombros, um leve muxoxo nos lábios. A neta teve uma professora, isso era certo. Só não aprendera a ter o segredo por trás do gesto evasivo. Seu gesto era só isso, uma evasão, um esvaziamento. Tatisa sabia o segredo. Esse, o seu grande aprendizado na vida.
— Mamãe!? A clínica não ficou de mandar?
— Ficou sim. Não chegou?
— Eu pensei ter visto, mas acho que me enganei.
— Procure, querida, pode estar por aí.
Tatisa fez a sugestão como uma provocação. Conhecia bem a filha.
— Meu bem, não está em cima da cômoda?
Muita coisa estava em cima da cômoda, sempre tão atulhada e objetos. E agora,  naquela arrumação de viagem? A filha vasculhou com pressa os objetos e nada achou.
— Deixe que eu procuro depois, filhinha, vá fazer sua viagem, descansar.
— Mamãe, é importante, a senhora sabe.
— Minha saúde está ótima!
Os netos apenas observavam aquele impasse entre mãe e filha. Havia uma luta se desenrolando diante de seus olhos. Eles não entediam verdadeiramente, apenas sentiam o embate, como um surdo percebe as vibrações do som em seu corpo. Eles sentiam e reagiam cada um a seu modo. A menina afinou-se ainda mais, foi ficando delgada. Mais um pouco e sumiria por entre as malas. O garoto apenas murmurava palavras inaudíveis. Ele represava uma torrente de violência que poderia explodir a qualquer momento. Era quem mais precisava da Bahia. O que aconteceria com esse menino solto numa cidade como aquela? Tatisa tinha medo de imaginar. O que quer que fosse, a filha certamente teria força para segurar tudo. Ela sempre teve. Agora mesmo era capaz de vencer uma avalanche de impossibilidades contra seus planos. E fazia tudo com um simples olhar. Apenas com ele ela era capaz de afastar todos os problemas. O marido ausente em suas reuniões voltaria a tempo? Quanto tempo poderia conter o filho explosivo? E aquela menina se adelgaçando através da adolescência, ela chegaria a ser adulta? Tudo parecia desmoronar em sua volta. Ela, no entanto, inventava forças novas a cada novo problema. Viajar. O carnaval. Ela ia se divertir e seguir em frente. Nunca foi tão chegada ao carnaval. Algumas festas em criança, as farras de adolescente, apenas o que era esperado de uma moça. E, agora, aquela viagem. Ela corria como uma corsa que sente cheiro de fogo na floresta. Corria para se salvar. Não do marido que escapava de seus braços, não dos filhos que escapavam de seu útero. Tatisa sabia do que ela fugia e o quanto de força ela usava para fazer isso. Ela sabia que a filha seria capaz de vencer tudo que lhe acontecesse, todas as tragédias. Mesmo uma catástrofe natural ela venceria com os filhos nos braços. Apenas uma força poderia destruí-la. Tatisa sabia. Em meio ao embate, falou mais alto a natureza. Tatisa tocou o braço da filha e disse:
— Eu estou bem, querida. Os exames ainda devem estar chegando. Amanhã, depois. A qualquer momento eles chegarão. Não adianta você se preocupar agora.
A filha pôs uma expressão preocupada no rosto.
— Mamãe, você vai me prometer que vai me ligar assim que os exames chegarem, viu. Aliás, assim que eu me instalar no hotel eu vou ligar pra senhora.
Prometeu. Adiantou-se nas despedidas. Pra que prolongar mais aquela agonia? Já não havia dúvidas demais no ar? O genro não dera notícias. Ele iria ao aeroporto? A filha aceitou aquela gentileza da mãe. Eles começaram os abraços, todo um ritual de separação. Recomendações de ambos os lados. O afeto demonstrado como que na obediência de um protocolo de Estado. Tatisa via a filha partir em sua fuga, quase livre. E então, quando tudo parecia resolvido, a neta deixa escorrer da boca uma voz fina, quase um fiapo.
— Vovó, hoje de manhã não chegou um envelope branco com uma faixa azul e cinza? Não é esse o envelope da Clínica?
A reação da filha foi imediata. Queria ver onde estava, queria ver se eram os exames. Ela já se dispunha a trazer as malas para dentro, quando Tatisa atalhou.
— Não, minha filha, aquele é o envelope da catarata. Eu estava olhando ele esta manhã. Você sabe que eu não me conformo. A ciência tão avançada e eu tendo de esperar isso amadurecer. Não me conformo de ficar cega, mesmo que seja só por um tempo. Uma coisa tão simples. Não entendo.
— Mamãe, antes do fim do ano a senhora vai estar ótima, enxergando tudo.
A filha ria tranqüila, inteiramente compreensiva. Podia ser generosa agora, já estava em pleno vôo para a liberdade. Repetiram as despedidas, um resumo rápido.
A porta se fechou e Tatisa finalmente ficou só. Foi sentar-se no sofá. O envelope ardia embaixo do paninho de crochê. Não precisava abri-lo para saber o veredicto. Lá não estaria a data final, apenas a ameaça. Por que lê-lo, então? Lembrou de como ele chegou pela manhã, a empregada empilhando todas as cartas na cômoda. Lembrou de como rondou em volta do móvel a manhã inteira, como se já beirasse a vida pelo lado de fora. O pequeno retângulo branco com uma faixa azul e cinza. Bastaria abri-lo e todos os planos da filha estariam desfeitos. No meio do dia, decidiu que ele deveria desaparecer. Precisava escondê-lo. Aproveitou um momento de distração da família e foi à cômoda. As cartas estavam mexidas. O envelope, displicentemente enfiado embaixo do paninho. Ela compreendeu a mensagem. Ele estava fechado. A filha o empurrara para baixo, como se fosse uma poeira que se deve esconder embaixo de um tapete, como uma porta que não se deve abrir. Quer dar uma espiada, Tatisa? Ela ouviu a voz de Lu ecoando do passado. Aquela porta não foi aberta naquela noite de carnaval, o baile verde esperando. Tatisa jamais abriu aquela porta. Nunca mais. Hoje, apenas, toda uma vida depois, diante do envelope fatal, é que ela teve coragem de encarar o que lhe reservara o destino naquele dia. Sentada no sofá, fechou os olhos embaçados. Ela estava de novo no topo da escada de sua antiga casa. Apenas o barulho do relógio quebrava o silêncio. A porta estava fechada. Tatisa aproximou-se com cautela. Investigou os ruídos de dentro. Não pode distinguir nada. Girou suavemente a maçaneta antiga. Um retângulo negro foi se expandindo. Os olhos de Tatisa, agora, podiam ver tudo. O mundo estava incrivelmente claro. Lá dentro cintilavam pequenas estrelas. Algumas  lantejoulas pareciam convidá-la a entrar. Ela se sentiu inexplicavelmente calma. E então, depois de tanto tempo, tantos anos fugindo, ela entrou.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Conto: SEGUNDA-FEIRA


O Conto SEGUNDA-FEIRA abre o livro CADA DIA SOBRE A TERRA, em que cada conto se passa num dia da semana e é influenciado pelo orixá reinante no dia.






Segunda-feira

— Mas o senhor veio pelo Campo Grande, moço? Tudo engarrafado? Assim não chego lá hoje.
O táxi estava parado em frente ao Palácio da Aclamação, num congestionamento de uma segunda-feira. A mulher, branca, aparentava mais de cinquenta anos. Os cabelos cacheados eram em tudo naturais. Mantinham o desalinho dos cachos e os grisalhos, que tomavam toda a cabeleira, enfiados entre os cabelos pretos da juventude. Ela arfava de um calor que sentia sozinha naquela manhã ainda fresca, abanando-se com um lenço branco, que, de vez em quando, passava no pescoço que se avermelhava. Os seios grandes, brancos, apareciam no decote amplo da bata também branca.
— Nem sei por que reclamo. Pior era quando o jornal ficava na Paralela. Um inferno! Muito longe, muito longe. Eu levava uma vida pra chegar. Em São Lázaro é muito melhor. Se pelo menos o senhor não tivesse vindo por aqui.
O motorista olhou pelo retrovisor sem dizer nada. Tinha perguntado por onde ela queria ir quando a pegou no Jardim de Nazaré, percorreu toda a Av. Joana Angélica e a passageira não disse uma palavra sobre o itinerário e agora era como se acordasse finalmente.
— E tenho de chegar cedo, cortar um texto. Agora tem de escrever pouco, umas notinhas apenas. Nada mais de matérias longas, nada de aprofundamentos. Não tem mais lugar para isso no jornal. Tem de ser rápido. Fácil de ler, como na internet. Agora tudo é internet. Pouco texto, muita foto. Ninguém mais lê, moço. O senhor lê jornal?
O motorista fez menção de falar.
— Lê as manchetes, já sei. Hoje em dia só se lê isso. E eles querem que a gente dê conta de contar tudo na manchete. Vai acabar assim, o senhor vai ver. E cultura, então, já era. Eu fiz uma matéria tão boa sobre o Ilê. O senhor foi no Ilê sábado? Foi o concurso da Beleza Negra. Tão bonito! Gosto dessas coisas. O Ilê tá com tudo. Eu lembro do começo deles, a luta que foi. Eu era nova no jornal. Quer dizer, eu era nova, nova de tudo, não era isso que o senhor tá vendo. Outros tempos. Agora, acabou-se. Fui lá com preconceito, não vou negar. Coisa de negros. Hoje não tenho preconceito. Tenho até amigos negros. Trato todo mundo igual.  Namorar não namoro, isso não. Sei lá. É uma questão de gosto, sem racismo. Na época até namorei, era a contestação. A gente ia contra aquela repressão da ditadura, cabia isso. Meu pai quando me viu com um colega da faculdade, mulato, ficou uma fera. Minha filha criada no Instituto Feminino agarrada com um tição. Ele gritava dentro de casa. A gente morava no Jardim Baiano, no tempo que era um lugar bom. Meu pai tinha fazenda de cacau, um monte de padarias e mercados na cidade, era filho de português, minha mãe era galega legítima, só nasceu aqui, mas a família era toda da Galícia. Fui bem criada, mas esse tempo acabou. Acabou-se, moço, acabou-se. O Ilê começou com aquela bobagem de não aceitar branco, era a luta deles. Falei tudo na minha matéria. Chamei de Que bloco é esse? Por causa da música, o senhor sabe. Contei toda a história da formação deles. Eu tava lá! E qual foi a ordem? Cortar, cortar, cortar. Nada disso, só uma notinha, mais nada. Aí, vou eu lá cortar, cortar, cortar. Que jeito?
O carro já passava pela Reitoria.
— Como se eu não tivesse mais nada pra me preocupar na vida. Tá certo que, sem os filhos, a preocupação diminui. Meia verdade, filho sempre dá dor de cabeça. A menina tá morando em New York. É assim que ela fala. Antigamente a gente botava tudo em português nas matérias. Hoje é no original, tudo estrangeiro. E essa mania de baiano de por nome americano. Aí escreve tudo errado. Onde tem w bota u. Um horror! E o Michael Jackson? Já viu o tanto de Maicon e de Jáquison que tem nesse país? A gente não dá conta. Minha filha tá lá. O marido tá trabalhando numa multinacional. Ela não faz nada. Estuda inglês e só. Querem ter filho lá, aproveitar pra ver se ele nasce americano. Quem dera, hein, moço, eu ser avó de um americaninho.
A mulher olha para o aviso de não fumar no vidro do carro.
— Aqui não pode fumar, né? Não pode fumar em canto nenhum dessa cidade. Meu médico me mandou parar. Disse que cigarro mata. Ah, se eu tivesse certeza disso? Tenho de ligar pra minha filha, saber como ela está. O problema é que eles não têm telefone lá. Só ligam pelo computador. A tal da internet. Uma ligação esquisita. E tem de ver um dia que eles estejam conectados. Muito difícil. A gente combina por e-mail, mas nem sempre dá certo... o senhor não fuma, não, né?
Ela batucou de leve na porta do carro.
— Meu médico mandou parar.
A mulher ficou olhando as pichações no muro do Hospital das clínicas.
— Aqui tinha sempre uma pichação: Fora Sarney, Fora Collor, Fora FHC... eles só mudavam o nome, o “Fora” era o mesmo. Eles estão todos lá agora. Não tem mais luta, moço, agora é cada um por si. Eu tô cuidando de mim. Vou lá ajeitar minha matéria, cortar tudo bem obediente. Não posso ficar sem trabalhar. Ai, ai. Sou um dinossauro. Se saio da linha, eles me notam e me mandam embora.
Abriu mais a janela do carro, baixou o último dedo de vidro que faltava, uma mudança mínima, e enxugou a testa.
— Tem muita gente nova por aí. Todo mundo conectado na internet. Eu que não me cuide. O que eles não sabem é escrever, mas são super descolados. Lá na redação tem uma novinha, toda antenada a cadelinha. Tatuagem, roupinha descolada, magrinha ela. Aposto que minha matéria vai abrir espaço pra um perfil que ela vai fazer de uma banda de rock, ou sei lá o quê, que nem disco tem. Eles lançam as músicas na net, ela falou, toda elétrica. Uma bobagem. Eu ouvi. Uma música que não anda, toda cortada. Não gosto disso não. Minha filha deve gostar.
Olhava pra fora, mas não via mais a rua, os olhos grudados no vazio.
— Tenho de ligar pra ela.
Olhou pra nuca do motorista.
— Eu tenho um filho, sabia? Mora em São Paulo com o pai.
E voltou a cabeça para a rua.
— Eu que não trabalhe. Vou lá e corto essa bendita matéria. Vou dar uma notinha e pronto. Nem posso demorar, esse médico marcado. Tantos exames! Não sei pra quê.
Em frente à entrada da Av. Euclides da Cunha, o carro para novamente. O Sinal vermelho.
— Já tive apartamento aqui na Graça. Vendi. Muita conta, o condomínio era muito alto.
Olha para a floricultura do outro lado da rua, exatamente em frente da saída da avenida.
— Essa floricultura aí é um perigo. Pra mim, qualquer dia um ônibus perde o freio e desce direto. Toda vez que passo aqui me dá uma aflição. Fico imaginando o ônibus entrando e matando todo mundo. Quando morava aqui eu ia longe pra comprar flores. Tinha medo de morrer esmagada. A gente tem uns medos bobos, né, moço. E nem adianta. No dia de morrer a gente morre e pronto. Não adianta espernear.
Ela se cala um pouco. O carro começa a subir a ladeira que vai dar no Campo Santo. O trânsito vai lento, o táxi segue atrás de um ônibus. A mulher parece mais e mais incomodada.
— Esse trânsito! São essas faculdades. Todo dia é isso. Antes tivessem deixado o jornal na Paralela. Pra que mudar? A gente só muda pra pior. E agora é cortar e cortar. Eu tô ficando sem espaço, eu e a cultura dessa cidade. Agora é a violência, o crime, o crack... bandido tem mais destaque que artista. Antes era uma página pros bandidos e o jornal livre pras outras notícias. Agora é só sangue. E é em todo canto, não tem mais jornal que não fale de crime. Até no horário nobre da televisão é assim. Olha só, era aqui que eu vinha comprar flores.
Estavam em frente ao Campo Santo.
— Engraçado. Tinha medo de morrer e vinha comprar flores no cemitério. Que ironia. Sabe que nunca mais comprei flores? Em Nazaré é mais difícil achar. Também, nem estou mais nessa de enfeitar casa. E o dinheiro é mais curto. Outros tempos. Mas não peço dinheiro a ex-marido. Tenho meu orgulho. Quando minha filha vier me visitar, compro flores. Ela vai ter de vir, vai ter. A gente não se fala muito, mas ela vem. Vou ligar pra ela. É minha filha, poxa. É isso que vou fazer hoje. Edito a matéria, vou ao médico e ligo pra ela. Pronto. Um dia todo organizado. É preciso ter um pouco de ordem no dia, planejar. Assim tudo dá certo.
O carro avança e passa em frente ao CEPHAR, antes de entrar na estrada de São Lázaro.
— No meu tempo não tinha isso de planejamento familiar. A gente tinha filho e pronto. O pai dos meus é esse homem horroroso. Penei muito. Antes tivesse me deitado com o mulato. Quem sabe no que ia dar, hein? Quem sabe? A gente acha que está fazendo tudo direitinho, a vida toda organizada, tudo planejado, mas, quando vai ver, já meteu os pés pelas mãos. Eu me ferrei legal. Se tivesse planejamento familiar naquela época, pelo menos uma injeção para não menstruar... ah, a vida sem cólica que bom seria. Eu já passei cada uma. Mulher sofre, meu senhor, mulher sofre. Tem que aguentar marido, filho, pai doente, mãe maluca, controlar a empregada assanhada com o seu marido, trabalhar para poder dizer que é independente, tudo isso e com cólica e salto alto. E depois, depois a gente é largada sozinha num canto, num apartamento grande e velho, num bairro que já era. A gente já era. Fazer o quê? Dizer que é jornalista? Pensar a cultura da terra, dar opinião, defender uma causa?  Nada. Tem de cortar. Seu box é pequeno, ele disse. Mantenha-se no seu limite. E todo dia lhe tiram um pedaço de espaço. É um comercial maior, é uma matéria sobre mais uma chacina, são as novidades da tecnologia, todo dia um pedaço de texto que lhe arrancam. E você não pode fazer nada. E a identidade cultural baiana? Corta. A música? Corta. O candomblé? Corta. Nada mais serve. Quando a gente se dá conta, eles já estão cortando nosso peito fora, tirando tudo. Sobra o que? Uma notinha, uma linha, uma nesga de espaço no papel, um buraco no peito. Faz um blog, eles dizem, escreve num lugar que ninguém vê, um mar de gente dizendo coisas sem sentido. Hoje é assim, moço. Todo mundo pode falar, não precisa estudar, não precisa faculdade, não precisa ser jornalista. Liga o computador e fala. E eu? Eu tenho de cortar, diminuir, espremer num cantinho de jornal trinta anos de história. E a minha história? O que eu faço? Engulo? Esqueço? Atiro pela janela? Eu me atiro pela janela? É isso? Eu me mato? Eu me mato? É isso que eles querem: me matar. Pois não vou morrer. Não vou. Eles que me aguentem assim, inteira. Não conto nem mais um pedaço, nada, nada, nada...
O carro já seguia em frente à faculdade de filosofia da UFBA, no final da rua.
— Mas o que o senhor está fazendo aqui? Já passou do jornal, moço.
— A senhora não disse onde era.
— E o senhor não sabe? Um motorista de táxi? Olhe! Me deixe aqui na igreja, me deixe aqui, vá.
O Táxi parou em frente à igrejinha branca de São Lázaro. A mulher pagou e desceu do carro, que arrancou em seguida. Ela ficou ali parada, sem olhar para a igreja. Olhava para o lado do mar, que se podia avistar dali por entre os hotéis de Ondina. Sentou-se na mureta e ficou observando o jogo de futebol no campo da universidade lá embaixo. Podia ver que aqueles meninos não eram universitários, novos ainda, adolescentes, muito jovens, muito irritantemente jovens e saudáveis e cheios de energia e de vida e alegres e descuidados.
Descuidados como só os muito jovens podem ser.
Ela ofegava. Estava sem fôlego da explosão de agora há pouco. Tinha se dado conta do quanto falara. Desde que entrou no táxi, estava falando. Ficou tentando imaginar o que o motorista tinha achado daquilo tudo, mas nem mesmo conseguia lembrar do rosto dele. Não reconheceria se visse novamente. Ficou ali respirando devagar. Lembrava da ioga? Tentou uma respiração profunda, mas só conseguiu ficar tonta. O ar faltava. Pensou que fosse mesmo desfalecer ali sozinha, numa manhã de segunda-feira pior que todas as outras.
— A senhora está sentido alguma coisa?
— Hein?
A jovem vestida de baiana de acarajé olhava pra ela.
— Veio visitar a igreja? Tá fechada hoje.
— Não, não vim ver a igreja, não, minha filha. Faz tempo que não entro em igreja.
— Veio tomar banho de pipoca?
— Como?
A moça mostrou a bacia que carregava apoiada na cintura. Estava cheia de pipoca.
— Não, minha querida, não acredito nessas coisas.
A menina riu.
— Tem certeza?
— Tenho.
— Não que tentar? Mal não faz.
— Não.
A menina sentou-se a seu lado. E colocou a bacia no colo. Mexia nas pipocas enquanto falava.
— Às vezes eu também não acredito, aí eu jogo as pipocas, junto com minha mãe, que é feita, e as pessoas se sentem tão bem.
— E sua mãe sabe que você não acredita?
— Falei pra ela um dia. Aí ela me disse pra eu não me preocupar que ela acreditava por mim.
— Compreensiva ela.
— Não é? Aí eu relaxei. Às vezes acredito, às vezes não, vou levando.
— E por que quer me dar o banho?
— Achei que a senhora estava querendo.
— Estou não.
— Tá bem.
Ficaram as duas sentadas olhando pro horizonte. Não falaram nada por alguns minutos. Soprava um vento fresco vindo do mar. A mulher descansava. Ela se sentia como se tivesse corrido uma maratona, a respiração difícil ainda. A jovem apenas a observava enquanto mexia as pipocas na bacia.
A mulher olho pra menina e riu suave.
— Já disse que não acredito.
— Eu sei.
— Então, por que não vai embora?
— Não tenho o que fazer agora, não.
A mulher se levantou.
— Bom, eu tenho de ir.
— Olha, se a senhora não acredita, tudo bem. Eu posso acreditar pela senhora.
A mulher achou engraçada a menina e riu.
— É! Hoje eu estou num dia de acreditar. Posso acreditar pela senhora.
Vencida pelo encanto que era aquela moça assim solícita, tão jovem e bonita ainda, a mulher aceitou.
— Está bem.
— Ótimo.
A jovem se levantou e começou a despejar sobre a cabeça da mulher as pipocas. Usava a mão direita e despejava aos poucos. Tinha um ar solene. Despejou quase metade da bacia.
— Pronto.
— Acabou? É só isso?
— É. Tá vendo? Acreditando ou não, nem dá trabalho.
A mulher sacudiu a cabeça e com as mãos tirou algumas pipocas que tinha grudado no cabelo. Sacudiu a roupa e se despediu.
— Agora eu vou.
— Vai em paz.
A mulher começou a voltar pela estrada. Caminhava devagar, sem pressa. Já respirava melhor. Não sabia mais o que ia fazer no jornal, nem lembrava o que devia fazer naquele dia. Tudo estava em branco no seu planejamento. Sabia apenas que devia voltar. Talvez até nem devesse ir ao jornal, podia voltar para casa ou ir a outro lugar. Podia fazer qualquer coisa. Que importava agora?
Sentiu no vestido, dentro do decote, alguma coisa que lhe incomodava. Procurou e achou no peito esquerdo uma pipoca pequenina. Ainda lá dentro do peito, por dentro da roupa, amassou a pipoca até ela ficar bem triturada. Uma onda de alívio invadiu seu corpo, sentiu um prazer real, como se alguém que a amava muito estivesse acariciando seu peito. Pela primeira vez em muito tempo, sentiu que as coisas podiam dar certo e que não estava acabado ainda.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

COMO FAZER UM CIGARRO DE MACONHA



Era uma noite em Recife. Eu estava na casa de amigos no bairro de Boa Vista. Estava ali hospedado, em férias, e acontecia uma festa. Em determinado momento, alguns amigos foram para o quarto. Hoje eu sei, mas àquela época não, que este sutil movimento dos cantos, o êxodo silencioso para os quartos, a súbita discrição, esse reconhecimento ancestral de pessoas que mal se conhecem, um entendimento tácito dos olhares, todos esses índices conduzem a um único ponto. Desatento que era e sou, fui também ao quarto. Lá estavam os amigos desembrulhando um pedaço de jornal com a maconha. Fiquei por ali olhando entre curioso e cansado. Não tenho nenhuma curiosidade por drogas, assim como não gosto de álcool, que me dá sensações desagradáveis. Não gosto desse tipo de embriaguez. É apenas não gostar, como quem escolhe andar pela esquerda e não pela direita... ou, talvez, um fastio, uma birra, como a que me fez recusar a chupeta quando criança. Minha mãe conta que a minha rasgou, não acharam outra igual. Veio uma maior, outra menor, sempre diferentes. Recusei todas. Talvez isso, talvez nada disso. O desejo de explicar tudo é a primeira prepotência humana.
Eu estava lá, olhando a intrincada operação de fazer um cigarro de maconha. Devia ser algo muito difícil, pois todas as tentativas resultavam em desastres. Os cigarros eram tortos, uma hora cheios demais, em outras, desfaziam-se.  Foi então que eu disse: eu sei fazer cigarros.
Eles não acreditaram. Eu, que nem bebia, ia fazer os cigarros?
O fato é que eu sabia. E muito bem.
Nunca gostei de fumar cigarros, apesar de todos na minha família fumarem. Decididamente, neste aspecto não sou fruto do meio. Algumas vezes, quando minha mãe me pedia para ir buscar a carteira de cigarros, eu acendia e já trazia acesso. Recebia uma bronca leve, sem muita convicção e pronto. Tentei umas vezes, mas não gostei.  Gostar ou não de alguma coisa talvez dependa dessas pequenas experiências na infância. Lembro que levei minha adolescência inteira sem gostar de creme de leite. Tinha ânsias de vômito só de pensar. Até que um dia, sabendo que ele compunha a receita de um doce, passei a vê-lo com melhores olhos, ou paladar.  Os enjoos passaram. Nada mais natural, já que os doces são as minhas drogas com seus males e prazeres e contra os quais luto diariamente.
Quanto aos cigarros, aprendi a fazer na adolescência. Tinha um avô que fumava cigarro de palha, com fumo de rolo, daqueles comprados na feira. Ele não podia fazer sozinho. Já estava velhinho. Aliás, desde que me lembro, ele era assim. Ele não tinha movimento de um dos braços, por causa de um tiro que sofreu numa emboscada de um ex-capataz, uma história a ser contada em outra oportunidade. Eram os tempos mais selvagens do sul da Bahia. Ele também já estava completamente surdo, um mal mais prosaico, causado pelo destino dos genes. Bem, desde muito pequeno, eu tinha de sentar a seu lado. Ele, naquelas cadeiras de lona de diretor de cinema americano, tão comuns no interior, eu, num banquinho.  Tinha de tirar pedaços de fumo do rolo, fatias finas, depois colocava uma quantidade na mão e esfarelava, ou desfiava, como se desfia frango cozido.  Fazia isso na palma da mão, que guardava aquele cheiro por dias.  Pegava o papel de fumo e colocava uma porção exata. O segredo era essa quantidade, que dava um cigarro na medida certa. Com a prática, eu fazia todos os cigarros iguaizinhos. Depois, era preciso enrolar o papel. Primeiro, o papel ainda apenas dobrado, fazia a quantidade de fumo ganhar a forma certa. Só então enrolava o papel, usando o canivete para prender a ponta interna dentro do rolo, da espiral que seria feita. Com saliva fazia-o colar. Ainda com o canivete, empurrava a pontinha dos canudos de fumo para dentro, fechado o cigarro nas duas pontas.
Com as variações necessárias, fiz lá os cigarros de maconha. Ficaram bons na medida do possível que o papel não era o adequado. Havia muito improviso naquela noite. Logo eles acenderam o cigarro, que passou de mão em mão. A fumaça subindo espessa fazendo círculos que se transformavam em espirais, mas que se embolavam no caminho e se espalhavam como um borrão branco. Aos poucos a conversa seguiu o mesmo caminho, os assuntos circulavam em torno da roda, enrodilhavam-se na tentativa da espiral ascendente e logo se desfaziam numa massa informe de risadas. Novamente, uma tragada, nova baforada de ideias, formava-se a primeira curva da espiral, a segunda; mas, de novo, o borrão. Outra tentativa, outra e outra e agora nem mesmo a primeira curva se formava. Tudo era apenas borrão. Desinteressei-me, saí do quarto. Eles ficaram lá dentro esfumaçados e vagos em suas dissipações.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Conto QUINTA-FEIRA


QUINTA-FEIRA
Do livro CADA DIA SOBRE A TERRA,
de Marcus Vinícius Rodrigues

Ele desceu como uma flecha as escada que ligavam a Ladeira de Nanã à Rua do Dique Pequeno. Pulou os buracos sem degrau e quase caiu quando pisou num deles que estava solto, mal colocado. Era uma escada ainda aquela, mas há muito abandonada, coberta de mato, degraus faltando, degraus soltos. Mas ainda assim era o caminho mais rápido entre o Parque Boa Vista de Brotas e o Dique do Tororó. Jorge não descia por ali há muito tempo. Tudo que fazia era lá em cima, no Engenho Velho. Nunca ia ao Dique. Pra quê? Nada ali lhe interessava. Via de longe as águas, os orixás em torno da fonte, a noite toda iluminada, as pessoas correndo em volta, os carros lentos nos engarrafamentos, tanta coisa girando em torno daquelas águas. A fila de ônibus seguia para a Estação da Lapa, numa romaria de gigantes. Pareciam os dinossauros daquele filme, todos enfileirados e burros, como gado a caminho do matadouro. Iam se enfiar nos buracos da estação e despachar do estômago as vísceras, os passageiros e suas vidas corridas e ocupadas.
 Via de longe apenas, da janela de seu quarto, todos os dias, da manhã até a noite, toda a noite, às vezes, quando ficava acordado, sem sono, sem um amanhã esperando, sem hora de levantar e sair para o trabalho. Apenas observava lá de cima o Dique e tudo que em torno dele girava, vivo e veloz, lento e constante. Era como se toda a cidade passasse por ali. Ele, em sua janela, olhava e sentia que não fazia parte daquilo tudo. Nada lhe dizia respeito.
Sem trabalho, sem conseguir nada, restava ficar em casa o dia todo. Depois que a mulher e os filhos saíam, ia para a janela. Podia descer, caminhar pela rua, ir ao Dique lá embaixo, mas para nada tinha vontade. No princípio, saía ainda de casa para as tarefas de desempregado, as filas de seguro desemprego, as filas de seleção, as entrevistas, essas eram suas saídas quase diárias. Depois, tinha o tempo ao lado do telefone, a espera. Nenhuma resposta. Aos poucos foram rareando essas saídas. Passou a enganar a mulher dizendo que ia sair e, quando todos deixavam a casa, ia até a janela e se deixava ficar. Sem nada a fazer, apenas contemplava. Via o céu mudar ao longo do dia, via as sombras das árvores do lado de cá se recolherem à medida que o sol ia alto. Depois, via as sombras das árvores do lado de lá se esticarem sobre as águas acompanhando a tarde caindo. Passava assim seus dias.
A mulher, no princípio, brigava, chamava-o de inútil, incapaz. Mas, com o tempo, desistiu. Aos poucos ela foi abandonando o marido, ocupada que estava com sua própria vida que seguia. Tinha um emprego e dois filhos para ajudar a sustentar. Eles trabalhavam, é verdade, mas ainda dividiam o tempo com estudos.  O mais velho vendia roupas na mesma loja em que a mãe trabalhava, num shopping popular no centro da cidade. O mais novo, ainda no primeiro emprego, era garçom, logo ali, no Dique, numa pizzaria à beira d’água. Este era o filho mais próximo do pai, o caçula, o júnior de seu nome, e que ainda se preocupava com sua demora para conseguir novo emprego, sua demora para acordar ela manhã, sua demora para dormir. Sempre que voltava da pizzaria, ainda o encontrava à janela.
— Ainda aí, pai?
— Esperando você, filho.
Ela sabia que não era verdade. Não era o filho que o pai esperava. De verdade, não acreditava que o pai esperasse alguma coisa ainda, tão desinteressado que estava das coisas, dos filhos, de sua mãe.
— Um colega me falou de uma empresa que está pegando gente, pai. A garagem é na Barros Reis. Quer que eu vá lá com o senhor?
— Pra quê? Eles não pegam mais cobrador com experiência. Se já trabalhou em outra empresa, eles não gostam. Acham que o cara já está viciado no que é errado.
— Não custa tentar.
— Cobrador esperto não bota todo o dinheiro no cofre. Morrer na mão de bandido pra quê? Tem que ser muito idiota ou novo o ramo. É preciso deixar alguma coisa para o ladrão.
— E aquele curso de motorista?
— To vendo aí uma vaga.
Não estava, o filho sabia. Já tinha tentado antes, quando estava empregado. Todo cobrador queria ser motorista, ele também. Começou a manobrar os ônibus na garagem, junto com o manobrista. Ia bem no aprendizado. Queria estar craque pro dia de se inscrever no curso da empresa. Faria o curso e seria um dos melhores. Daí era só tirar a carteira e, na certa, seria promovido. Sua vida estava assim programada.  Mas, então, num dia em que treinava à noite, depois do trabalho, a garagem quase cheia de ônibus, estacionava um deles num último espaço na fileira, ali bem perto da bomba de gasolina. Manobrou errado, abriu demais a curva e atingiu a bomba, de leve. Ela quase se soltou, ela quase vazou. Quase foi um acidente enorme. Todo o combustível podia ter vazado, tudo podia ter explodido. Nada aconteceu. Apenas Jorge perdeu o emprego, por um triz, por um centímetro, por uma meia volta que não fez no volante. Por quase nada.
E tudo que sabia era trabalhar como cobrador, os dedos ágeis para contar dinheiro. Queria levar essa agilidade para o gesto largo dos braços, mas errou o tamanho da volta. Era tão antigo na empresa, mas não tinha como explicar estar ali no lugar errado, na hora errada. Tinha apenas de sair e não voltar. Foi assim que, depois de tantos anos, voltou pra casa e ficou. Até o dia em que se debruçou na janela para ver o sol de pôr atrás do bairro do Tororó lá do outro lado do Dique. Viu aquela luz se esvaindo escorrendo para o mar que tinha lá do outro lado, deixando atrás de si um escuro salpicado de luzes miúdas nas casas. Dormiu aquela noite um pouco mais tarde, vendo as pequenas luzes se apagarem aos poucos, as casas lá do outro lado se fechando para esperar a manhã.
Nessa época, sua mulher ainda se incomodava de ele não ir dormir junto com ela, mas uma noite, mais cansada que das outras vezes, dormiu sem chamá-lo. Ele passou a noite na janela, viu o filho mais novo chegar do trabalho, viu mesmo ele sair da pizzaria lá embaixo e atravessar a rua a caminho de casa. Nesse dia só foi para a cama com o dia quase raiando. Quando a mulher saiu de casa para trabalhar, ele ainda dormia.
Foi assim que seus horários se separaram do resto da casa. Apenas com o mais novo tinha um momento de conversa no fim da noite.
— Eu tenho um freguês que trabalha nessa empresa que falei. Ele disse que consegue alguma coisa pro senhor. Basta ir lá.
— Que coisa, filho? Sei trabalhar com mais o quê?
— Ele consegue uma vaga de despachante. É mais que cobrador, mais que motorista.
— E por que ele vai me dar uma vaga tão boa.
O filho hesitou em falar.
— Ah! Ele me deve essa. Um favor que fiz pra ele, mas ele disse que o senhor se encaixa na vaga. Contei como o senhor era e  ele gostou.
— Assim. Só de você contar?
O filho olhava agora pela janela e para o Dique lá embaixo. Concentrava o olhar nas árvores em volta, procurava ali alguma coisa que estava escondida. Queria uma resposta que escondesse a que não podia dar. Uma boa história, com alguma verdade ainda, capaz de saciar o pai e sua desconfiança em tanta sorte.
— Começou quando ele perguntou por que eu era Júnior, de que nome. Quando eu disse que me chamava Jorge e que o senhor se chamava Jorge, ele gostou. Quis saber se o senhor era feito.
— E o que você disse?
— Eu não menti.
— Ah!
— E ele gostou assim mesmo. Disse que era um Jorge que podia resolver a vida dele. Num Jorge ele podia confiar.
O menino falava aliviado, tinha resvalado na mentira, mas já estava de novo nas fileiras dos sinceros. Não importavam muito os detalhes da conversa que tivera e que ajudariam o pai a entender o que estava dizendo. Importava que o pai entendia a parte que interessava. Ele era querido naquele trabalho. Era necessário. Alguém já confiava nele.
— Vamos lá depois de amanhã?
— Sexta? E alguém começa a trabalhar numa sexta-feira?
— Pra ele lhe conhecer. Dando tudo certo, o senhor começa segunda.
Jorge demorou a dormir como todas, mas acordou cedo. Ainda ouviu os barulhos matinais da casa, a mulher e o filho mais velho se arrumando para o trabalho. ficou na cama fingindo dormir até eu a casa estivesse silenciada. O filho mais novo também tinha saído para a escola. Antes, porém, sentiu sua presença no quarto, observando o pai que dormia. Estava esperançoso, era visível na forma como andava pela casa. O pai queria retribuir tanta esperança, tanta confiança ainda. Assim que ficou sozinho, levantou-se. Tomou café como todos os dias, em pé, no corredor em frente à cozinha, de onde podia ver a janela do quarto. Naquela hora não costumava ficar na janela. Apenas a partir das dez horas da manhã é que começava sua vigília diária.
Mas aquele era outro dia. Em vez de se debruçar na janela, resolveu tomar banho e sair. Estava um dia quente, sem nuvens no céu. O bairro tinha muito trânsito naquela hora. Quando alcançou a rua principal, que contornava o Parque Boa Vista, os ônibus passavam em velocidade, quase tocando as casas que ficavam muito próximas da rua.  Caminhou pelo canto, sem calçada, até entrar no Engenho Velho. Sabia que lá dentro, quase no fim-de-linha, tinha um babeiro barato. Nunca tinha ido, já fazia um tempo que cortava o cabelo de qualquer jeito em casa com a máquina de raspar do filho. Cortava baixo, mas sem raspar, e sem acabamento. Hoje, queria diferente. Um corte normal, como se fazia antigamente, bem batido nos lados e atrás, bem curto, mas ainda com cabelo. Queria mostrar os brancos que já tinha e mostrar que eram poucos, homem forte ainda. Homem respeitável, mas forte.  Foi esse o corte que pediu ao barbeiro. Apenas quando sentou na cadeira para cortar os cabelos é que viu, pelo espelho, lá atrás numa prateleira, a figura de São Jorge. Ele estava sobre seu cavalo momentos antes do golpe fatal de sua lança. O dragão, sob as patas do cavalo, aguardava o golpe. Eles estavam paralisados naquele momento, um segundo antes do fim, a morte e a glória, a redenção enfim. Dali a pouco o mal seria destruído e se esvaneceria para sempre da face da terra.
— Da lua.
Era assim que o filho lhe corrigia toda vez que contava essa história. Era pequenino ainda e depois que ouviu a primeira vez, percebeu a incoerência. Se São Jorge vivia na lua, ele e o dragão, só podia acabar com o mal de lá. Aqui na terra ficava tudo a mesma coisa. E quando o pai mostrava a lua e dizia que aquelas manchas era o santo perseguindo o dragão, o filho dizia: mas ele não já matou esse bicho?
Um dia, o filho pediu de presente uma estátua de São Jorge. Foi difícil explicar que não podia dar a imagem, que a mãe dele não gostava dessas coisas. Idolatria, ela dizia, quando o filho tocava no assunto.
— Mas meu pai é devoto de São Jorge.
— Não é não. Já se libertou dessa enganação de demônios.
A mãe sempre falava de demônios. Acreditava muito neles. O menino acostumou-se a não falar mais no assunto. O pai acostumou-se a nem mesmo lembrar como fora sua infância e sua juventude, como um guerreiro, um caçador em meio a uma floresta de aventuras. Acostumou-se ao emprego simples, acostumou-se ao desemprego, acostumou-se a apenas ver o mundo girar em torno das éguas do Dique, em seu sentido anti-horário, como se estivesse sempre voltando no tempo, um segundo para frente, dois para trás, todos os dias parados e iguais, sem nada para acontecer.
— Pronto.
O babeiro anunciou o fim do corte, trouxe um espelho que pôs atrás de Jorge. A nuca estava batida, bem rente ao couro cabeludo. Depois, o cabelo ia subindo e formando no alto da cabeça um topete duro, ainda muito curto. A cabeça inteira estava uniforme, sem que os crespos do cabelo se enrodilhassem. Jorge gostava assim, um corte rente, antes que o cabelo desse a primeira volta, uma espiral antes de começar. Assim ele podia ser qualquer coisa e ninguém podia saber ainda o que era. Era o mesmo truque dos filhos, que raspavam tudo, só que com mais perigo, pois o corte vinha no último instante. Em uma semana tudo se desfazia.
Jorge contou os dinheiros do bolso, pagou e saiu. Estava cada vez mais confiante naquela nova vida que viria. Caminhou de volta para casa com o olhar mais alto, fixo em frente. Assim, reparou que reparavam nele, a moça do armarinho, que escondeu um sorriso com as mãos, a velhinha que lhe cumprimentou, o carregador de cervejas que lhe deu passagem, mesmo segurando tanto peso. Caminhou um caminho reto e decidido, sem se desviar, sem ser desviado por ninguém, apenas seguia um caminho traçado. Chegaria lá, pensava. A cada passo, sentia-se menos só, como se lhe acompanhasse aquele São Jorge da barbearia. Não tinha um espelho agora. Se tivesse, surpreenderia o santo lhe servindo de escolta. Podia apenas sentir o trotar do cavalo e, à frente, depois de passar por sobre o seu ombro direito, lá adiante, a ponta da lança que lhe abria os caminhos, certeira, exata. Chegou mesmo a perceber um jovem se desviar da lança. Ele saía de uma loja e, ao virar, pareceu ver a lança e desviou de lado. Jorge passou sem olhá-lo, mas pelo canto dos olhos pensou vê-lo fazer um gesto de saudação e murmurar um canto.
Foi assim que chegou em casa, foi assim que passou todo o dia: encantado. Tinha sempre a seu lado o cavaleiro da lua e seu cavalo, mesmo no pequeno quarto de dormir. Não ligou para os comentários da mulher sobre seu cabelo. Ela logo o deixou em paz, já acostumada com o silêncio do marido. Sabia que ele e sua janela viviam num mundo distante do seu. Ele voltava os olhos para fora, para o horizonte, e nada que acontecesse na casa lhe incomodava. Foi assim naquela como nas outras noites, mas desta vez ele não se sentia só, senti-se forte e confiante. No dia seguinte, cedo, acordaria e, com o filho, seu Júnior, iria ao novo emprego. Bastava esperar mais essa noite passar, apenas mais uma, apenas mais uma.
Mas o tempo não passa assim em saltos, como quem pisca o olho e acorda no outro dia. As horas se arrastam pouco a pouco, e é preciso ver tudo que acontece nos momentos inúteis da espera. Jorge olhava o Dique e seus giros em volta diminuindo. Já não havia mais o congestionamento de carros, os ônibus já rareavam, a noite já ia alta e começava a descer para o dia. Ele esperava. Foi então que viu.
Se ele contasse a alguém o que viu, diriam que era mentira, que àquela distância não poderia ver nada, ainda mais à noite. Sandices de um velho. Mas ele viu
Saindo da pizzaria, já apagada, viu o filho. Era um vulto indecifrável na noite, mas era seu filho. Podia ver o andar que conhecia há tanto tempo, desde os primeiros passos. Podia ver os gestos das mãos, as mesmas mãos que se estendiam para pedir o colo do pai, quando o pai era toda a fortaleza que conhecia. Ele gesticulava conversando com um rapaz. Eram gestos fortes, decididos. O outro rapaz apenas ouvia, sem nada dizer. Então, começou a falar e seus gestos eram mais fortes e pareciam brigar com Júnior. Parecia que brigavam. Jorge, então, viu o filho mudar. Ele explicava alguma coisa, pedia, depois brigava. O outro respondia mais violento. Quem era aquele homem? Jorge não conhecia. Não era ninguém da pizzaria. Conhecia todos lá e tinha certeza que reconheceria todos. Era um desconhecido. A discussão continuava cada vez mais violenta até que o filho empurrou o rapaz, que caiu no chão. Jorge estava tenso e orgulhoso. O que viria agora? Foi então que algo brilhou no rapaz. Jorge não viu o que era, mas viu o filho dar um passo pra trás.
Jorge afastou-se da janela num salto. A mulher dormia na cama. Queria voltar e ver o que acontecia, agarrar-se a sua janela de onde via tudo acontecer lá embaixo, a distância lhe dando toda a segurança de que precisava. Bastava voltar e pronto. Mesmo que visse o filho ser morto, ainda assim, estaria em sua janela de onde observava o mundo. Ali. Seguro.
Bastava voltar e olhar.
Jorge saiu correndo pela casa até a porta da rua, saiu porta afora num galope violento. Não sabia o que fazia ou pensava, apenas corria como uma flecha. Uma flecha certeira e caçadora que uma vez lançada só para no alvo fatal.